Sexta-feira, 11 de Outubro de 2024

Coluna Draft: ‘Os mortos falam?’, por Edgar Talevi

2022-02-23 às 10:40

Os mortos falam?

Invisíveis, mas presentes. Estamos diante de um cenário escatológico no pior contexto possível, a Pandemia. E, diante disso, é improvável que os mortos se comuniquem com o mundo externo, mas não impossível!

José Saramago, Nobel de Literatura, em sua esplêndida obra “Ensaio sobre a Lucidez”, diz: “(…) falemos abertamente sobre o que foi a nossa vida. Se era vida aquilo, durante o tempo em que estivemos cegos”. Singulares, tais como o próprio autor, os versos traduzem o meio pelo qual a sociedade se perpetua, qual seja, a livre seleção de nossos acertos e erros, mas, acima de tudo, nosso arbítrio, exercido na forma máxima da democracia.

Se o prezado leitor chegou até aqui, deve ter deparado com a “arteirice” deste colunista, dada a expectativa resultante do título que preludia este artigo. Mas, nenhuma astúcia seria maior do que não evidenciar a justeza e ontologia  do imperativo e indispensabilidade da tese do voto nas eleições mais importantes da incipiente democracia brasileira, a saber, 2022.

Neste diapasão, a política propicia um canal alvissareiro de construção semântica de significados. A problematização por que passam as pautas da agenda macro e microeconômica, social e partidária se emancipa na tangibilidade do subjetivo do eleitor, à medida que este alcança tutela sobre suas decisões. Nada há mais irrevogável, inegociável, irretratável e inalienável que o Direito Sagrado ao voto nos “gazofilácios” da democracia, as urnas.

Sabe-se que, ao arrepio das Fake News, uma das principais dúvidas a serem dirimidas pelos eleitores é a despeito da nulidade de uma eleição a partir da majoração de votos em branco e nulo. Há quem arrazoe que, ao se manifestar votação nula ou em branco acima de 50% do total de votos desferidos, o pleito seria anulado. Ledo engano. Mero folclore, diria o escritor William John Thoms.

O cientista político e professor da Universidade de Brasília (UNB), Flávio Britto, assegura, baseado na legislação em vigor, que tanto os votos nulos quanto os votos em branco não são levados em conta na apuração que dá o resultado da eleição, pois não são considerados válidos. Segundo o cientista político, mesmo que haja 99% de votos nulos ou em branco, a eleição não será anulada. Desta forma, não resta alternativa ao sistema espectral político-partidário a não ser hegemonizar o acesso ao livre exercício da cidadania, que configura o depósito da esperança nas urnas.

Com a devida vênia do exímio leitor, ouso propelir a metáfora dos “mortos” para hastear a flâmula da precípua e basilar necessidade de se alvitrar em favor da representatividade política que advém de uma escolha consciente no átimo do voto.

Fator cógnito é o crescimento do voto nulo ou em branco nas últimas eleições. Segundo o cientista político, Sérgio Abranches, tal surto é devido ao “voto de protesto”. Para Abranches, esses votos significam, sobretudo, negação. É o que ele chama de voto “nem-nem”, por falta de sentimento de pertença a algum candidato, em que o eleitor não se sinta representado.

Para o jurista José Afonso da Silva, o voto é o ato político que materializa, na prática, o direito público subjetivo de sufrágio, ou seja, voto é processo de escolha, portanto, quando a opção é pelo voto nulo ou em branco não há, tecnicamente, voto, pois não houve escolha.

Ademais, uma manifestação apócrifa do eleitor, quer dizer, votação nula ou em branco, gera oportunidade de que, cada vez menos pessoas decidam o futuro de um Município, Estado ou País em que impera a democracia, causando o esfacelamento desta.

Destarte, ao fazer jus à asserção constante deste ensaio, quando enunciamos comunicação, existem duas formas distintas e dissemelhantes a serem consideradas: comunicação “dos” mortos e “com” os mortos. No que se refere à política, a comunicação “dos” mortos é altamente improvável de acontecer. Elucido: os mortos, aqui figurados como eleitores que optam pelo voto nulo ou em branco, por serem invisíveis à luz do entendimento da apuração da totalidade de um pleito, não conseguem traduzir suas expectativas, esperanças, nem viabilizar uma transformação, metamorfose do que se roga.

Deste modo, a comunicação “dos” mortos é nula, estapafúrdia, inexistente, invisível, despercebida. Nada acrescenta, nem delibera, tampouco determina um novo constructo ou paradigma político e social.

Pelo outro lado, a comunicação “com” os mortos é substancial e assentada na inópia da natureza da democracia. Cabe aos “canônicos” atermarem aos “apócrifos” a imprescindível necessidade de escolha por meio do maior atributo de um Estado Democrático de Direito, o voto consciente.

Dialogar, em ambiência dialética, com pluralidade de ideias, sem privilégio a um dado establishment, em que o debate seja multifacetado e estremeça o status quo inoperante de um modus operandi strictu é salvaguardar a liberdade de expressão, vangloriando-se da estreiteza com o valhacouto da propriedade das sínteses dos relacionamentos na tecitura social.

Permanente e sólida, a reflexão crítica, por meio de ideias e ideais, estabelece macrocosmo de possibilidades novas e de vanguardas na manutenção de Direitos Fundamentais do Ser Humano, sendo a Democracia um deles.

Ter apreço pelo voto é, acima de tudo, garantir que a esperança permaneça inamovível de nossa sociedade. E, nesta perspectiva, todo cidadão, além de eleitor, torna-se fiscal do sistema. Jacques Rousseau exemplifica o espírito da liberdade na seguinte frase: “Uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém”.

O voto, na exegese da democracia, é a pluralidade na singularidade e a singularidade na pluralidade. O mais rico tem direito a um só voto, tal e qual o mais vulnerável, daí a igualdade de se flexionar institutos sociais outrora inarredáveis.

Ao epílogo, contata-se que não há comunicação dos mortos, mas deve-se estabelecer contato com estes para que findem os dias de perecimento do Humano.

Ensine-nos, portentoso dramaturgo, William Shakespeare, sobre vida e democracia: “Os covardes morrem várias vezes antes de sua morte, mas o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez”.

Coluna Draft

por Edgar Talevi

Edgar Talevi de Oliveira é licenciado em Letras pela UEPG. Pós-graduado em Linguística, Neuropedagogia e Educação Especial. Bacharel e Mestre em Teologia. Atualmente Professor do Quadro Próprio do Magistério da Rede Pública do Paraná, na disciplina de Língua Portuguesa. Começou carreira como docente em Produção de texto e Gramática, em 2005, em diversos cursos pré-vestibulares da região, bem como possui experiência em docência no Ensino Superior em instituições privadas de Ensino de Ponta Grossa. É revisor de textos e autor do livro “Domine a Língua – o novo acordo ortográfico de um jeito simples”, em parceria com o professor Pablo Alex Laroca Gomes. Também autor do livro "Sintaxe à Vontade: crônicas sobre a Língua Portuguesa". Membro da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes. Ao longo de sua carreira no magistério, coordenou inúmeros projetos pedagógicos, tais como Júri Simulado, Semana Literária dentre outros. Como articulista, teve seus textos publicados em jornais impressos e eletrônicos, sempre com posicionamentos relevantes e de caráter democrático, prezando pela ética, pluralidade de ideias e valores republicanos.