Quinta-feira, 19 de Junho de 2025

Crônica D’P: Orbitae Terrae – por Renato Van Wilpe Bach

2022-06-26 às 11:31
Foto: Reprodução

O nascer do dia marca, com ritmo variável, o recomeço de tudo. A luz do sol, tímida, reflete no céu desde bem cedo um prenúncio de claridade, e descobre gradualmente o colorido do mundo. Não à toa, a alvorada é metáfora de inícios, mudanças e revoluções.

Depois da noite escura e cheia de perigos, em que nos recolhemos buscando proteção, podemos novamente olhar à distância, perceber as cores, aspirar ar puro com os olhos firmados no azul. O que nos era tão difícil, amargo ou assustador se vê de outra forma à luz do dia, com o tempo nos trazendo a justa medida das coisas, para citar Raduan Nassar.

“Se você tem um problema, durma com ele”, era o ditado-conselho de meu bisavô, certeiro. Era um homem prático, vivido, que intuía a fisiologia por experiência própria.

Ao dormir, sonhar e acordar novamente, sintetizamos memórias “bioquímicas” no nosso cérebro, decupadas dos trilhões de “bytes” de informação acumulada durante o dia anterior. As lembranças — e os problemas — tomam forma, e já conseguimos lidar com eles. Ou ao menos suportá-los.

O novo dia traz, também, problemas de sua própria lavra. A vida — difícil, trabalhosa e indefinida até o último instante — exigirá de nós tudo, até aqueles 30% que dizem que temos quando estamos exaustos.

De quase nada teremos certeza nesse tempo de amores líquidos, democracias falhas, hiperrelativização filosófica e cancelamentos históricos. Duvidaremos dos nossos, dos amigos, da família, de nós mesmos, da própria existência. Estaremos imersos em um holograma? Por que existimos? Haverá sentido na vida? O que nos aguarda após a morte?

Mas perseveraremos, ainda que cansados, ainda que abatidos, ainda que vencidos. É como nos filmes, em que o mocinho baleado ainda reage, mesmo que na iminência de tomar outro tiro. É o tal instinto de sobrevivência, atávico, incontornável, que nos exige resposta frente ao impossível, fugir do impensável, voltar ao equilíbrio.

Somos mais “naturais” do que pensamos, apesar de cercados de tecnologia e proteção. Acreditamos ter controle dos nossos instintos, pensamentos e sentimentos, mas, enquanto isso, o ritmo circadiano estimula glândulas e neurônios em uma cadência própria de luz e sombra, que nos escapa à consciência. Glicose e insulina em um balanço perfeito, corticoides para nos acordar, adrenalina para fugir, ocitocina quando recebemos afagos. Sono à noite, potência de dia; a eletricidade do ar antes da tempestade que nos deixa nervosos; o barulho da chuva que nos embala o berço; frio e calor.

Tomo um café, uma ducha, e saio para a rua, de carro; erro o caminho, indo parar quase no Centro da cidade, embalado por uma seleção musical de “low volume funk” que celebra uma vida que não tenho, que talvez ninguém tenha. Por um instante, esqueço a hérnia de disco, a depressão e o fim do mundo tal como o conhecemos. O animal que vive em mim saúda o dia, a noite e os astros com os seus nervos trêmulos, a cada vibração do contrabaixo, irmanado à Terra da qual sou passageiro, matéria tornada vida, milagre jamais encontrado em volta de outro sol.

Renato Van Wilpe Bach é médico, escritor e professor residente em Ponta Grossa