Atraído pelo mistério da fauna – animal e humana –, o xilogravurista ponta-grossense Fernando Bertani produz uma arte que nasce do confronto do ser humano com o mundo que o cerca
por Enrique Bayer
Desbravar, com uma combinação de força, destreza e precisão nos movimentos, formas de reinterpretar as nossas relações pessoais e com aquilo nos cerca: é isso que o xilogravurista ponta-grossense Fernando Bertani faz. Com madeira MDF, goivas, lápis, tinta e papel, Bertani vem se destacando pelas suas produções, que retratam animais, a música e a vida rural do Paraná.
A escolha dos temas tem uma razão: Bertani é geógrafo e músico. Ainda que as graduações não sejam determinantes em sua produção, ele reconhece a influência da formação acadêmica na sua arte, mas ressalta que é a cultura popular que o encanta. “Também gostaria de explorar temas como a agricultura familiar, populações tradicionais indígenas e manifestações culturais de matriz africana nas Américas”, afirma.
Para o artista, esses eixos temáticos são as “nossas fronteiras de luta por dignidade” e remetem a outras formas de organização da vida, de relacionamentos, de relações com a terra, com os nossos próprios corpos e com a natureza. A visão de Bertani, expressa nessas palavras, segue uma certa tradição, pelo menos da xilogravura brasileira.
Ainda que a história da técnica remonte há cerca de 1.500 anos, no Japão, a relação do ponta-grossense com a xilogravura é mais recente: o artista, que já teve uma obra exposta no 11º Salão de Artes Visuais de Ponta Grossa, começou a produzir gravuras por causa da pandemia, no primeiro semestre de 2020.
Encanto e estranhamento
“Eu já atuei na área de ensino e pesquisa da Geografia e também sou músico. Interesso-me bastante por etnomusicologia e aspectos sociais da geografia. Mas a xilogravura foi uma loucura. Porque ela me encanta. Ao mesmo tempo que exige um tanto de força, faz calos e me deixa com dor, a xilogravura exige delicadeza. Uma puxada em falso conduz o traço para outro caminho, e aí você marca a peça definitivamente. O mesmo motivo que me encanta é o motivo pelo qual eu nunca tinha feito antes”, revela.
Bertani conta que as primeiras experiências foram com Pínus, mas as características dessa madeira dificultaram a produção das gravuras. “Ele é macio demais. Às vezes saem lascas que você não quer”, explica. Foi então que o MDF surgiu, como uma alternativa mais econômica do que as outras madeiras e mais adequada ao trabalho.
Olhares misteriosos
A primeira peça produzida por Bertani foi uma capivara. Peça, aliás, que despertou a vontade de continuar. “Quando eu terminei a capivara, percebi que ela estava olhando para mim. Ali eu não consegui parar mais”, aponta. O retorno do público estimulou o artista, que continuou a retratar animais, sempre com olhares misteriosos e profundos.
O avanço e o domínio da técnica vieram sem nenhum tipo de formação, mas não “do nada”. “Eu sou viciado em referências. Vejo peças e artes, e vou salvando. Comecei com álbuns de música, depois perfis pessoais no Instagram, galerias virtuais. Gosto de seguir as pessoas, entender o que está por trás das ideias e dos processos”, explica.
Em se tratando de influências, Bertani cita xilogravuristas de peso, como J. Borges, Carybé e Ciro Fernandes. Entre os artistas mais jovens, ele aponta os brasileiros Denilson Baniwa, Samuel Casal e Edson Ikê, e os mexicanos Eduardo Robledo e Irving Herrera. Para o artista, os mexicanos merecem destaque porque mesclam a xilogravura com a arte de rua.
Com tantas referências, Bertani conta que tem uma tendência a buscar coisas diferentes, mas que, no primeiro momento de sua produção, conseguiu focar em animais. “Eu fiz algo semelhante a fotos 3 x 4 de bicho e muito focado na fauna brasileira, boa parte com um carinho e admiração ainda maior pelos Campos Gerais e pelas aves”, observa.
Os closes, que dão destaque ao olhar dos animais, são fruto dessa admiração. “Eu sou encantado por esse olhar dos bichos. Um bicho, quando te encara, faz esse ‘espelho’, e aí você tem esse estranhamento”, avalia.
Processo de produção
No processo de confecção que Bertani e a maioria dos xilogravuristas adota, o artista entalha a madeira, pinta as partes elevadas da peça e pressiona a madeira em papel ou tela. Ou seja, a xilogravura é uma espécie de impressão. O processo, segundo ele, consiste em desenhar direto na madeira, sem transferência – algo que, para o artista, dificulta a confecção de retratos sob demanda, de um filho ou de um cachorro, por exemplo.
“Eu tive que aprender com o tempo. Fui fazendo. Na xilogravura, usamos a ideia do negativo, ou seja, você tira ou preenche com luz o que, em um desenho infantil, por exemplo, você não iria preencher”, detalha.
Para escavar as peças, Bertani usa duas goivas com formatos distintos. A primeira tem a ponta com formato em “V”, e a segunda, em “U”. Isso interfere diretamente no tipo de desenho que é possível fazer. A goiva em “U” tira sulcos mais largos, enquanto a em “V” é usada especialmente para traços mais finos ou riscos.
Além disso, a tinta – especial para xilogravura e com secagem mais lenta – é fundamental. Bertani conta que, antes mesmo da escavação de algumas obras, ele pinta as peças de preto. Segundo ele, dessa forma é mais fácil visualizar o processo de escavação.
Outra ferramenta que requer atenção é o rolo que pinta as peças. “O rolo tem que ser emborrachado, bem liso, para não permitir que a tinta escorra para espaços da peça onde você não quer tinta”, esclarece.
Entre desenho, escavação e secagem da tinta, as peças demoram, em média, dois dias para ficarem prontas. Bertani conta que, quando começa uma peça, tem o costume de “baixar a cabeça e só parar quando termino”. “Mas agora eu tomo mais cuidado. Há um tempo, recebi uma encomenda de quatro peças. Tentei fazer duas no mesmo dia e lesionei o cotovelo”, lembra.
Entre a música e a xilogravura
Apesar de ter um número considerável de clientes, Bertani conta que ainda não pode se dedicar exclusivamente à xilogravura. De acordo com o artista, um dos obstáculos é a aquisição de uma prensa, equipamento que custa entre R$ 2 mil e R$ 9 mil.
Como ele raramente trabalha com impressões de suas peças – elas são únicas, feitas na madeira –, isso significa que são exclusivas e não podem ser reproduzidas, o que acaba deixando todo o processo mais caro. “Deixar as peças mais baratas talvez demandaria que eu deslocasse os meus esforços para a impressão. Na impressão, uma matriz pode resultar em até 50 folhas, mas é uma folha. A questão é que, em nenhum momento, até agora, eu cheguei a mergulhar de cabeça na xilogravura, porque eu sempre travo na questão do investimento”, aponta.
O preço dos trabalhos varia de acordo com o tamanho e o detalhamento das peças, que já foram vendidas para clientes dos Estados Unidos, Itália e outras regiões do Brasil, como São Paulo e Brasília. Para esse público, o preço é um pouco maior por causa da mão de obra com frete, que envolve proteger as peças, por exemplo.
“Os preços variam de R$ 100,00 a R$ 300,00, o que eu entendo que, para algumas pessoas, seja caro. Mas, se comparar com outras peças do mesmo tamanho e detalhamento, você vai ver que, na verdade, os meus trabalhos são baratos”, opina. Para efeitos de comparação, uma impressão de J. Borges – de 83cm x 65cm, assinada e emoldurada – é vendida por mais de mil reais.
Como ainda não é um xilogravurista profissional, Bertani também trabalha com música. Um de seus projetos é um espetáculo de música com composições instrumentais de sua autoria, que será executado via Programa Municipal de Incentivo Fiscal à Cultura (Promific), no segundo semestre deste ano. O projeto trará ritmos cubanos, da música afro-brasileira e da música uruguaia.
Bertani também faz parte das bandas Tiriva e Lamalaika, conhecidas no cenário de Ponta Grossa. Além disso, há outro projeto em andamento: o Polenta Jazz, com improvisações de jazz latino e funk.
Arte “imatura”
Questionado se já conseguiu deixar a sua “marca” nas gravuras, Bertani aponta que, por enquanto, percebe apenas um processo de aprendizado, mas já com certas tendências. “Na coleção dos bichos tem um certo padrão. Algumas peças saem da moldura, tem toda a questão do olhar e do 3 x 4 que eu já comentei… Essas são algumas características que marcam”, avalia.
O artista comenta que ainda quer buscar traços mais expressionistas, algo que conseguiu realizar na peça que retrata um trompete. “Aquela mão tem vários tendões, está exagerada, mas também tem um pouquinho de realismo. Eu ainda estou nessa transição, então não dá para dizer que algo se definiu. Podemos dizer que a minha arte é imatura. Imatura porque eu estou aprendendo, mas também porque não estou adequado a repetir padrões”, teoriza.
Novas explorações
No futuro, Bertani quer explorar, além dos animais, as ruralidades. “Tentar deslocar a animalidade do bicho para a animalidade humana. Uma coisa mais cheia de mistério”, adianta. Outro eixo temático que promete bons frutos é a música e as suas relações com o corpo. “Quero explorar mais essa coisa do movimento”, acrescenta.
“Tudo isso parece muito amplo, mas o futuro é essa coisa meio de limbo mesmo, essa possibilidade de escolha que a gente faz agora. Está tudo muito aberto. Mas a xilogravura é uma coisa que, com certeza, vai perdurar na minha vida”, finaliza.