Quarta-feira, 14 de Maio de 2025

Crônica D’P: 6º ano, por Kleber Bordinhão

2022-12-29 às 13:25

Eu tenho um sonho recorrente em que me vejo invariavelmente dentro de uma sala de aula, seja na escola, colégio ou universidade. São os lugares onde eu estudei e os colegas são os mesmos, o que muda é que nos sonhos eu tenho também a experiência de ter sido professor. Vai entender. O professor Freud deve explicar.

O certo é que, quando eu despertei hoje de um sonho desses, passei a manhã toda lembrando das minhas aulas no Ensino Fundamental. Segundo o historiador e professor Leandro Karnal, quem deu aula para o 6º ano é capaz de fazer qualquer coisa no planeta Terra. Eu dei aula durante quatro anos para os recém-chegados ao Ensino Fundamental II e não me sinto onipotente como descreve o “profe” Karnal, mas foi a experiência, de longe, mais rica que eu tive como docente e como gente.

Antes de tudo, é preciso lembrar que, normalmente, um aluno ou aluna que entra no 6º ano já tem – ou terá nos meses seguintes – 11 anos de vida. Nem mais tão criança e ainda longe de ser adolescente.

Eles começam o ano letivo carinhosos. Não é raro trazerem pequenos presentes. Mal você adentra a sala e eles te cercam. Alguns só para dizer oi. Outros para te contar que a mãe os deixou dormir na casa da tia Jaqueline no sábado e que eles ficaram acordados até as duas da manhã. Nessas horas, o modo Xuxa é inevitável. Sentem lá, Cláudios e Cláudias. Essa empolgação dura menos de um semestre. Logo vão ignorar sumariamente a sua entrada em sala de aula até a chamada.

Nome após nome, intercalados por pedidos inúteis de silêncio. E ai de você se chamar a atenção do aluno errado. Nessa idade, a noção de justiça é implacável. Eles são capazes de qualquer coisa para provar que não estavam conversando. Angariam testemunhas e provas, e apresentam tudo ao fim da aula em busca da redentora inocência.

São competitivos. O famoso “terminei” é praticamente um ponto final oral de qualquer atividade. E não adianta pedir para que os outros não façam o mesmo. Ao menos os cinco primeiros “colocados” farão questão de ser reconhecidos. E, enquanto o resto da turma continua, os rapidinhos abraçam o ócio e é aí que mora o perigo. Mente vazia, oficina das dúvidas. “Quantos anos você tem, professor? Por que não é casado? A sua barba comprida é alguma promessa? O meu tio tem um carro igual ao seu, é gastador, né?”

Para o 6º ano, eu dei aulas de inglês e produção de texto. Trabalhar com eles uma língua estrangeira tem lá as suas curiosidades, mas, às vezes, ler as redações dos alunos nessa idade é dar razão às mais piegas das mensagens de grupo de família no WhatsApp. Entre relatos de férias e aventuras de heróis tendo eles mesmos como protagonistas, alguns textos realmente ficam registrados na nossa memória para sempre. Como a declaração de amor e fidelidade que um aluno, certa vez, escreveu para a sua progenitora. Depois de um sem número de elogios, já no final do texto, ele confessou de coração aberto que, assim que nasceu e olhou pela primeira vez para aquela mulher ali no hospital, mesmo sem a conhecer direito, não teve dúvida: percebeu no mesmo instante que ela seria a sua mãe para o resto da vida

Kleber Bordinhão é escritor, autor de livros de poesia e crônica. Instagram: @kleberbordinhao

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #293 Novembro/Dezembro de 2022.