Com as prisões realizadas em Brasília nos atos antidemocráticos de domingo (08), circulam pelas redes sociais publicações que comparam a situação de detidos em ginásios com campos de concentração utilizados pela Alemanha nazista para extermínio de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, entre outros grupos. O Museu do Holocausto, instituição que busca unir os eixos de educação, memória e pesquisa com um projeto museológico permanente sobre o tema e que fica localizado em Curitiba, afirma que “é necessário cuidar para que essas comparações não sejam rasas ou incoerentes, levando a uma vulgarização do genocídio”. Estima-se que mais de 6 milhões de judeus foram mortos em campos durante o Holocausto.
Em nota enviada ao D’Ponta News, o Museu afirma que o uso do termo é desonesto, tanto ética quanto historicamente, visto que na Alemanha houve a “perda do direito a ter direito”. “Na democracia brasileira, os detidos por se manifestarem a favor de um golpe contra o Estado democrático de direito têm garantidos o direito à ampla defesa, comunicação, alimentação e tudo o que o sistema garante, até mesmo a quem viola suas regras mais fundamentais. O respeito às vítimas dos campos de concentração nazistas requer conhecimento básico do que é um sistema democrático, seus direitos e deveres, além de suas consequentes responsabilidades”, afirma.
Confira abaixo a íntegra da nota:
“É preciso destacar, primeiramente, que fazer comparações entre eventos históricos não se constitui, em si, em um problema. Devemos evitar a ideia de que comparar eventos ao nazismo, apesar de tarefa complexa, seja proibido, o que contribuiria para uma sacralização do Holocausto. Por outro lado, é necessário cuidar para que essas comparações não sejam rasas ou incoerentes, levando a uma vulgarização do genocídio.
A comparação e o uso do termo “campo de concentração” para descrever o contexto atual de prisões são desonestos ética e historicamente, além de desrespeitosos perante as vítimas – milhares delas reconstruíram suas vidas no Brasil. Como apontou a filósofa Hannah Arendt, o que os nazistas impunham aos prisioneiros de campos de concentração era a perda do “direito a ter direitos”. O oposto do campo não é, portanto, uma noção de liberdade irrestrita e irresponsável. É justamente a manutenção do “direito a ter direitos”.
Os campos nazistas foram desenvolvidos a partir de um estado de exceção e regidos por ideias de superioridade racial que se materializavam em prisões, trabalhos forçados e assassinatos de pessoas que não haviam cometido qualquer crime. Os prisioneiros desses campos faziam parte de uma massa amorfa, elementos descartáveis para o regime.
Na democracia brasileira, os detidos por se manifestarem a favor de um golpe contra o Estado democrático de direito têm garantidos o direito à ampla defesa, comunicação, alimentação e tudo o que o sistema garante, até mesmo a quem viola suas regras mais fundamentais. O respeito às vítimas dos campos de concentração nazistas requer conhecimento básico do que é um sistema democrático, seus direitos e deveres, além de suas consequentes responsabilidades.”
O posicionamento é compartilhado pela professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Janaina de Paula do Espírito Santo, que defende que a comparação é um perigo, além de ser equivocada. “A gente tem a frase de um historiador famoso, que eu gosto muito, que se chama Peter Burke. Ele diz que a função do historiador é lembrar aquilo que a sociedade quer esquecer”, pontua. “O que era o Holocausto? Existia um plano estatal de extermínio de uma população. Pessoas que viviam suas vidas cotidianas foram presas, perderam tudo que tinham, foram escravizadas, vivam em condições inumanas e depois foram exterminadas pelas câmaras de gás. Se fala muito de não se perder essa memória porque é um dos momentos mais violentos da história humana”, conta, ao lembrar que a prisão em ginásios também foi comparada com o processo promovido pela Inquisição da Igreja Católica.
Já na invasão à Praça dos Três Poderes, segundo a professora, “criou-se um movimento inconstitucional, se invadiu e depredou o patrimônio público e se realizaram atos contra a lei e essas pessoas foram detidas. Estão em condições precárias, com certeza, mas nada que se assemelhe às condições que se vivia em um campo de concentração”. Janaina complementa afirmando que quando se cria uma “equivalência dessa natureza a gente está ajudando a esquecer aquilo que a sociedade não pode esquecer. Quando a gente diz que duas coisas muito diferentes são semelhantes, a gente está desrespeitando a memória daquelas pessoas que sofreram a violência e todo efeito que ela causou. Não é só um perigo pelo erro histórico. É um perigo porque quando a gente faz isso se desconsidera o real custo humano de toda essa violência”