Quarta-feira, 11 de Dezembro de 2024

Coluna Lettera: ‘Um homem livre’, por Francielly da Rosa

2023-05-29 às 10:00

Era só mais um homem. Apenas mais um entre outros tantos.

Eu estava a caminho do ponto de embarque do ônibus, em minha rotina habitual de toda quarta-feira. Uma senhora, vindo na direção contrária, passou ao meu lado e seu olhar demorou-se em mim. Seus olhos, cabeça e pescoço rodaram para olhar, sob ondas daquele olhar caído, algo em mim que não consegui identificar. Seria o meu vestido preto na altura do joelho? Minhas botas pretas que uso com frequência? Meu andar desajeitado? A mochila preta e o casaco preto pendurados? Ou seriam os pelos arrepiados das minhas pernas que eu finjo que não existem, mas continuam lá? Nunca saberei.

Parei, sob a luz do sol das 16 horas, sob o olhar opaco das multidões, que, como crianças, se interessam com entusiasmo pelo novo brinquedo, mas logo depois o esquecem, apagam-no da memória e seguem adiante.

Atrás das grades, um homem. Um homem deitado na grama da pequena praça que é vizinha ao terminal central. Ele estava livre, quem estava presa por aquelas grades era eu. Invejei por um instante aquele momento de liberdade verdadeira. Álcool, drogas, cansaço? O que é que importa?! Era um homem livre deitado na grama, olhando para o céu azul de um fim de tarde, sentindo na pele o calor de um sol ingênuo, serenando, sonhando com um mundo de homens libertos.

Pessoas passavam, olhavam, algumas com receio, outras com pena. E eu o invejava, porque era um homem livre na rua, um homem que se transmutou em grama. Livre. Entre sonhos, entre limites lúcidos e sádicos, entre o real e o que é verdadeiro. Dormindo, vivendo, sendo.

Entre tanta gente querendo ser, ele era. E talvez alguém, vendo-o, deixe emergir o pranto convulsivo, o grito, o desespero de querer ser. Enquanto a liberdade se pinta em tons de homem, em tons de grama, em tons de livre.

Não era apenas mais um homem no mundo, na rua, era o dono do mundo, em um mundo que não tem dono. A liberdade se pinta, às vezes, entre imagens de abandono, mas é livre, é mundo, é verde.

“Pobre coitado!” – alguém diz.

Pobre coitados de nós que não somos livres! Estamos presos em nós, como pássaros enjaulados, somos apenas espectadores de outros mundos libertos, de sonhos que dormem nas ruas. Estamos presos às nossas limitações. Acostumamo-nos à rotina de olhar apenas para si. Quem de nós dirige uma palavra sequer ao homem livre?  Quem é que acolhe o homem livre deitado na grama? Quem é que pensa nele?

O ônibus logo chegou ao ponto de embarque. A rotina espelhada nos pensamentos desordenados. Ao chegar preciso fazer tal coisa. Sairei de lá tal horário… Respondo uma mensagem, penso e repenso as minhas tarefas. O ônibus parte, barulhento, o abrir e fechar das portas se assemelha ao barulho de uma panela de pressão. As conversas surgem como ruídos, logo cessam. A paisagem se distancia e uma nova se aproxima num ciclo infindável. O barulho do ônibus é a única coisa que interrompe um silêncio de mentes ocupadas demais com suas próprias rotinas. Chego em meu destino. Distribuo passos cansados. Percebo. Esqueci do homem.

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.