Sexta-feira, 13 de Dezembro de 2024

Crônica D’P: Singularidades do coletivo, por Kleber Bordinhão

2023-06-25 às 14:40
Foto: Reprodução

Entro no ônibus e cumprimento o motorista. Dois passos depois, o cobrador me alcança o troco sem saber se eu tenho um olho ou dois. Meu obrigado não correspondido fica preso na roleta. Lá no fundo, à esquerda, dois estudantes olham para mim. Sento à esquerda deles ao lado da janela. Refletir sobre o sentido da vida é inevitável. Ainda mais quando, numa esquina, depois de três segundos de olhares cruzados, uma criança me mostra o dedo do meio da mão direita. O motorista arranca, o menino e seu dedo ficam para trás. Em uma curva mais fechada, o sol não pede licença e bate forte no meu rosto. Vai me acompanhar em todo o trajeto. Na parada seguinte, os estudantes descem rindo. Penso que é de mim. Sempre é. Agora somos só nós quatro. O motorista, o cobrador, o sol e eu. No meio da tarde de uma quinta-feira, eu reparo no chão do ônibus. Quatro risquinhos paralelos apontando para quatro risquinhos que apontam para outros quatro se multiplicando até formarem um mosaico sem sentido e cinza. Em duas horas, terá todo tipo de par de calçados. Sobrepostos uns aos outros. Transversais. Paralelos também. Cuspindo gente para as portas. Atenção! Automáticas e perigosas. O cobrador lá na frente desce da roleta. Fala com o motorista muito mais do que o necessário, julgo eu. Um casal embarca e atrapalha a reunião. O trocador volta ao seu posto ainda demonstrando o riso orgulhoso da piada recém-dita. O homem e a mulher avistam-me como contraponto de onde se sentarão. No limbo da tarde dos bairros ninguém tem pressa. Senhoras passeiam. Cachorros dormem. Uma bicicleta salta do meio-fio direto para a memória do menino. Ele ainda não sabe. Uma notificação interrompe a minha música. Mensagem, conteúdo oculto que pode esperar. O ônibus entra no terminal. De longe dá para ver as pessoas se aglomerando sob a placa da vila. O casal deixa para mim as portas de trás. Elas abrem e sinto-me um profeta. As pessoas abrem um corredor para a minha descida. Olham para mim para além de mim. Sou um percalço. Desço e ninguém sabe se tenho um olho ou dois. Sobem excitados. Vou na direção do amarelado mural de horários e o tempo pesa-me nas costas. Sinto-me antigo e antiquado. Encontro abrigo no celular. Dois minutos para o próximo ônibus. Sob a placa da outra vila, duas dezenas de pré-passageiros contornam a linha amarela de segurança. O veículo chega e novos profetas dividem aquela poça de gente. Assim que o último ex-passageiro alcança o chão do terminal, o corredor se desfaz e a massa se modela em funil, e, como areia de ampulheta, acomoda-se perfeitamente à câmara seguinte. Subo por último, como um grão atrasado trazendo o som das engrenagens fechando as portas e a cena. Estou sozinho em pé e na mania de olhar em volta. Cada par de olhos sentados está mirado nas telas azuis. Vez em quando alguns emergem e me flagram. Aí, submerjo eu. Troco a música e dou-me conta da proximidade do salto. Aciono a campainha e só o motorista ouve. A tarde já mingua. O trocador garante que dei o segundo passo no solo e dá o sinal. O ônibus arranca. Ficamos na calçada o sol e eu.