Estudos apontam relação entre COVID-19 e perda de memória, fato que neurologistas de Ponta Grossa confirmam no dia a dia do consultório
por Edilson Kernicki
Neurologistas que atendem em Ponta Grossa indicam que houve, em seus consultórios, um aumento significativo de casos relacionados a problemas de memória desde o início da pandemia de COVID-19. Os mais comuns, segundo eles, envolvem a perda de memória recente, de curto prazo. Conforme a neurologista Mariana Welling, casos de perda de memória, falta de atenção ou dificuldade de concentração vinham ocasionalmente (mas nem sempre) acompanhados de sintomas de transtornos do humor, como ansiedade e depressão. Até 2022, mesmo em casos leves ou até praticamente assintomáticos, pacientes relataram dificuldade de recordação da memória recente, que exige planejamento executivo, muito relacionado à atenção.
Mariana relata que ultimamente as queixas diminuíram, mas que ainda não é possível afirmar se a redução se justifica pela atual cepa do vírus ser menos neurotrópica, ou pelo fato de os casos serem mais leves, ou, por fim, até mesmo pelo fato de as pessoas já esperarem que podem ter uma perda cognitiva relacionada à infecção pelo Coronavírus.
A médica ressalta que a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu um parâmetro que, para caracterizar que a perda de memória é efetivamente relacionada à COVID, ela precisa aparecer até três meses após a manifestação dos sintomas e durar pelo menos outros dois. Além disso, não pode ser explicada por diagnóstico alternativo. Portanto, é salutar, para o tratamento, investigar se há ou não causas paralelas, que incluem depressão, transtornos do sono, alteração de tireoide e deficiências de vitamina.
“Alguns estudos de prevalência demonstram que manifestações relacionadas à perda de memória estão presentes em cerca de 80% dos pacientes com infecção por COVID. Dores de cabeça em 70% dos pacientes, e tontura em 47%. Então é realmente uma doença que está muito relacionada ao sistema nervoso central”, explica Mariana.
Cérebro inflamado
“Teoricamente, a causa dessa perda de memória se deve à inflamação no cérebro provocada pelo vírus. Vale lembrar que o vírus provavelmente invade todas as células do paciente”, afirma o neurocirurgião Rogério Clemente. A afirmação do especialista é corroborada pelo artigo “Morphological, cellular and molecular basis of brain infection in COVID-19 patients” [Bases morfológicas, celulares e moleculares da infecção cerebral em pacientes de COVID-19, em tradução livre], publicado em agosto de 2022 na revista científica americana PNAS, da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.
Um estudo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) analisou a ação do vírus sobre o cérebro e a sua eventual relação com a depressão, a ansiedade e a perda de memória no pós-COVID. Eles identificaram a presença de material genético do Sars-Cov-2 no cérebro, com focos de infecção nos astrócitos, células do sistema nervoso com variadas funções, desde o suporte funcional e nutricional dos neurônios até a manutenção da homeostase – condição de equilíbrio do organismo para que cumpra as suas funções regulares.
A pesquisa, que coletou amostras de tecido cerebral de 26 vítimas fatais de complicações da doença, exames de imagem e testes “in vitro” com astrócitos, detectou que o vírus da COVID-19 provoca uma alteração metabólica que induz essa célula a produzir substâncias capazes de matar os neurônios. O estudo também observou que pacientes com COVID moderada tiveram perda de massa encefálica em regiões específicas do cérebro, fator correlacionado à diminuição da capacidade em testes de memória e de emoções, além do aumento de quadros de ansiedade.
Mariana acrescenta que, além do fato de o vírus da COVID-19 se instalar no sistema nervoso e danificar estruturas cerebrais, outros fatores desencadeados pela infecção geram prejuízo na atividade cerebral, como o processo inflamatório, a hipoxemia (dificuldade de manter o nível adequado de oxigênio nos tecidos) em pacientes que tiveram COVID mais grave, as alterações vasculares e os processos de infecção secundários relacionados à infecção pelo Coronavírus, como processos bacterianos e sepses infecciosas.
Tratamento
De acordo com Clemente, a evolução clínica de cada caso é muito individual no tratamento da perda de memória pós-COVID. Segundo o neurocirurgião, a melhora é espontânea ao longo de alguns meses e a recuperação completa ocorre em até 18 meses após a infecção. Conforme o especialista, exames de imagem são recomendados para afastar outras causas ou doenças que afetam a memória. Avaliações como as neuropsicométricas “medem” a memória de um paciente a partir de testes aplicados por neuropsicólogos, profissionais capacitados para indicar terapias não-medicamentosas para reverter os quadros de perda de memória.
Se o paciente não melhorar em até seis meses após a infecção, cabe ao neurologista afastar as causas paralelas antes de prescrever o tratamento, que inclui atividade física e terapia cognitivo-comportamental, menciona Mariana. Caso o paciente tenha comorbidades que afetam a memória – ansiedade, depressão ou transtorno do sono –, elas também devem ser tratadas.