O programa Ponto de Vista, apresentado por João Barbiero na Rede T de rádios do Paraná, na manhã deste sábado (9), recebeu os médicos especialistas Frederico Barra, Maria Tereza Jacob, Denise Katz e Marcos Tenório para um bate-papo sobre a prescrição da cannabis medicinal. Desde a legalização do uso para fins medicinais no Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já aprovou 25 produtos elaborados a partir da cannabis.
O goiano Frederico Barra é mestre e doutor em ortopedia e traumatologia. Maria Tereza, de Campinas (SP), é médica especialista em dor e endocanabinologia. A paulistana Denise Katz é gerente médica da Mantecorp Farmasa, pediatra e também especialista em dor. Marcos Tenório é ortopedista e traumatologista e atende em Ponta Grossa.
Maria Tereza pontua que a polêmica em torno do assunto é compreensível, tendo em vista que nossa formação cultural ainda vê apenas o uso recreativo da maconha. “A cannabis, como uso médico, remonta há milênios. Não é uma coisa nova. Novo é o porquê ela atua, como ela atua. Hoje sabemos que temos um sistema no nosso organismo, assim como o sistema respiratório e o sistema opioide, onde os opioides – os analgésicos para dores mais fortes – atuam, temos um sistema endocanabinoide. Diferente de tudo o que se conhecia até então, esse é o sistema de equilíbrio do nosso organismo. Por ser um sistema de equilíbrio, está presente em todo o nosso organismo”, explica. Ainda que a planta seja a mesma – a cannabis sativa – a composição da planta para o uso médico no tratamento da dor crônica refratária difere da maconha para uso recreativo, observa a especialista em endocanabinologia.
A leitura dos laboratórios com relação ao tratamento com uso de cannabis obedece à legislação brasileira, segundo a gerente médica da Mantecorp. “Cannabis medicinal é um fitomedicamento. Não existe maconha medicinal e não existe cannabis – o óleo, o extrato – que ‘dê barato’ [produzir efeito entorpecente]. A indústria farmacêutica produz a cannabis medicinal a partir de um produto que é importado da Colômbia, onde há liberação legal para plantação de cannabis sativa. Lá existem algumas indústrias que extraem o óleo, de forma regulada, produzem, a partir de laboratório, oxida a planta, o que faz com que todos os componentes do cannabis se transformem em moléculas que têm ação no nosso organismo e aí, então, produzimos um remédio, um fitomedicamento. É muito diferente de termos uma plantinha plantada em casa e ferver no óleo ou na água. Tem gente que está com o entendimento errado de que produzir cannabis em casa ou num laboratório improvisado vai resultar no mesmo produto. Não é a mesma coisa”, alerta.
Denise orienta que a manipulação doméstica de cannabis pode fazer mal ao paciente, porque não se sabe exatamente o que há nesse composto. Ela compara a situação ao uso de antibióticos: “Não se compra qualquer antibiótico na farmácia, mas aquele que o médico prescreveu, porque ele entendeu que, para aquela infecção é aquele antibiótico que é o melhor para sua saúde, naquela dosagem”, frisa. “O cannabis medicinal da indústria brasileira é vendido na farmácia com receita, que é assinada por um médico. Muito diferente de você entrar na internet e mandar entregar um óleo de cannabis que não sabe de onde veio e não sabe quanto de produto tóxico pode ter naquele extrato que não foi fiscalizado pela Anvisa”, adverte. A receita para essa medicação é controlada (receita azul) e, a depender da dose, pode ser receita amarela.
Na Medicina há 25 anos, Frederico Barra aderiu aos tratamentos com canabidiol há cinco. “Até 1992, não se sabia que produzíamos cannabis endógena. Nosso corpo produz cannabis todo dia“, explica São os chamados endocanabinoides: a anandamida (AEA) e o 2-araquidonoilglicerol (2-AG) se ligam a receptores canabinoides do tipo 1 e 2 (CB1 e CB2) presentes tanto no sistema nervoso central (SNC) como no sistema nervoso periférico (SNP). A falta de produção de endocanabinoides pode, inclusive, desencadear depressão, segundo Barra.
“Quando fiz Medicina, ainda não estudávamos isso, não era de conhecimento científico. É uma ciência muito nova. Com os estudos que foram surgindo de 1990 para cá se chegou a um consenso de para qual doença podemos realmente começar a usar”, acrescenta o ortopedista. Na ortopedia e no tratamento do sistema músculo-esquelético, a cannabis é aplicada ao tratamento de dor crônica e de alterações como a fibromialgia e dor oncológica.
Várias evidências científicas, meta-análises e estudos, com metodologia correta, convenceram o médico a avaliar a cannabis como alternativa para pacientes que não vinham melhorando apenas com tratamentos convencionais: antiinflamatórios, opioide, acupuntura, fisioterapia, reabilitação, anticonvulsivantes e antidepressivos. “Lançamos mão de vários medicamentos para tratar a dor, várias cirurgias – de coluna, bloqueios, infiltrações. Caso o paciente não melhore com a primeira e segunda linha de tratamento, aí temos como opção a cannabis medicinal para ajudar na dor dos nossos pacientes e melhorar a qualidade de vida”, observa. No entanto, a administração de canabidiol vai ser a última etapa nesse tratamento multimodal, ou seja, somente depois que todos os demais recursos foram adotados.
O ortopedista e traumatologista Marcos Tenório destaca que conheceu o tratamento com cannabis medicinal há pouco tempo. “Sou um cirurgião em formação, faço cirurgia de quadril, de joelho. O cannabis medicinal faz parte de um arsenal. Quando você chega ao meu consultório com artrose de quadril, vou fazer a indicação de uma prótese nele. Não vou passar cannabis, vou fazer uma prótese. Pode ser que eu venha a passar [prescrever] cannabis se a dor mantiver. Faz parte do contexto do tratamento para a dor. A função social minha, na questão do profissional médico não entender ou quem está querendo buscar esse conhecimento dessa ‘nova’ terapêutica, é replicar aquilo que me passaram”, diz. Tenório foi até a Mantecorp para se inteirar a respeito do tratamento da dor com cannabis medicinal e ressalta que, com ele, foram apenas outros dois médicos do Paraná.
“O sistema endocanabinoide no nosso organismo é um sistema que é tão competente quanto o respiratório, cardiovascular, digestivo e neurológico. É um sistema que garante um equilíbrio entre todos os outros, num funcionamento todo organizado e sincrônico”, explica Denise. Assim como o corpo produz a dopamina, ele produz a anandamida e o 2-AG (2-araquidonoilglicerol), que são transmissores do sistema endocanabinoide. Segundo ela, a sensação de bem-estar “que dá barato” após uma corrida, que era associada à liberação de endorfina, vem sendo compreendida ultimamente como, na verdade, a liberação de anandamida. “Anandamida é uma palavra que deriva de ‘felicidade’ em sânscrito; ‘substância que dá prazer’. É a anandamida que tem esse papel de bem-estar“, detalha Denise. Os canabinoides possuem funções similares às dos neurotransmissores e sua produção é estimulada, até mesmo, pelo consumo de chocolate e ômega 3 ou ao fazer acupuntura.
Uso pediátrico
Segundo Maria Tereza, a redescoberta do canabidiol como alternativa para tratamento médico nasceu justamente da necessidade de tratar epilepsia refratária em crianças. O canabidiol pode, sim, ser usado em crianças, ainda que existam algumas restrições. “Deveríamos sempre usar só o CBD isolado, o canabidiol isolado. Não deixei de ser careta, porque continuo sendo totalmente contra o uso da maconha na infância e na adolescência, em cérebros não-formados”, diz.
De acordo com ela, ainda se vislumbramos apenas “a ponta do iceberg” tanto no que se refere à planta quanto ao sistema endocanabinoide. “Na minha época de faculdade, se falava que a maconha ‘fritava o cérebro’. Hoje se sabe que o THC é o grande vilão. Quando tem indicação e sendo uma prescrição médica, ele pode ser usado. Mas, num cérebro não-formado, muda a formação do nosso córtex. Se eu der a uma criança hoje, tudo bem, posso ajudar a controlar a doença que ela vai ter, mas mais tarde posso me sentir responsável por ela ter um transtorno de saúde mental”, alerta.
O córtex completa sua formação por volta dos 24, 25 anos e, até essa idade, a médica não recomenda o uso de THC. Deve ser administrado somente o canabidiol isolado. “A partir daí, se a pessoa quiser usar de forma recreativa, é problema dela. Mas, para uso médico, não deveríamos”, diz.
Complemento, não substituto
“É importante que o médico não seja um prescritor de cannabis, especificamente. Essa coisa do médico canábico é uma distorção da ciência. Devemos ter muito critério em escolher um médico que prescreve qualquer tipo de medicação, que não vai suspender nenhum remédio que você já está tomando, seja qual for a doença que você tem, mas que vai acrescentar”, complementa Denise.
A gerente médica de laboratório farmacêutico entende a cannabis como complemento ao tratamento de doenças graves como dor crônica, espasticidade por problema neurológico grave, esclerose múltipla, epilepsia refratária e transtorno do espectro autista (TEA). “Não vou cancelar ou tirar que o autista já está tomando. Vou acrescentar e entender como aquilo está funcionando naquela doença”, ressalta.
Frederico Barra é docente no curso de Medicina da Universidade Federal de Goiás (UFG) e de algumas faculdades particulares também em Goiás e observa que, hoje em dia, os alunos em formação estão aprendendo sobre o sistema endocanabinoide. Segundo ele, mesmo que o futuro médico não se sinta à vontade para prescrever o canabidiol, precisa entender como ele atua para poder fazer a interação medicamentosa (prescrever outras substâncias) e entender as indicações e contra-indicações. “Tem que saber também quais são os efeitos colaterais. Por exemplo, em doses muito altas, pode ser hepatotóxico [fazer mal ao fígado], cardiotóxico [afetar o coração]. Temos que saber até onde pode ir, os eventos adversos e a dosagem”, esclarece.
“É um remédio muito mais seguro que os opioides, como a morfina. Você tem uma segurança muito grande. É uma opção e a população deve consultar com seu médico de confiança. Para os colegas médicos, que entendam mais sobre o assunto, porque é um sistema que existe dentro de todos nós”, enfatiza Barra.
Ponto de Vista
Apresentado por João Barbiero, o programa Ponto de Vista vai ao ar semanalmente, aos sábados, das 7h às 8h, pela Rede T de Rádios do Paraná.
A Rádio T pode ser ouvida em todo o território nacional através do site ou nas regiões abaixo através das respectivas frequências FM: T Curitiba 104,9MHz; T Maringá 93,9MHz; T Ponta Grossa 99,9MHz; T Cascavel 93,1MHz; T Foz do Iguaçu 88,1MHz; T Guarapuava 100,9MHz; T Campo Mourão 98,5MHz; T Paranavaí 99,1MHz; T Telêmaco Borba 104,7MHz; T Irati 107,9MHz; T Jacarezinho 96,5MHz; T Imbituva 95,3MHz; T Ubiratã 88,9MHz; T Andirá 97,5MHz; T Santo Antônio do Sudoeste 91.5MHz; T Wenceslau Braz 95,7MHz; T Capanema 90,1MHz; T Faxinal 107,7MHz; T Cantagalo 88,9MHz; T Mamborê 107,5MHz; T Paranacity 88,3MHz; T Brasilândia do Sul 105,3MHz; T Ibaiti 91,1MHz; T Palotina 97,7MHz; T Dois Vizinhos 89,3MHz e também na T Londrina 97,7MHz.