Quarta-feira, 25 de Setembro de 2024

Enfoque D’P: “Se apinche” pra cá e saiba mais sobre o dialeto falado em Ponta Grossa

2024-09-25 às 13:33
Foto: Gabriel Ramos de Lima

por Erica Busnardo

Ponta Grossa abriga um verdadeiro tesouro linguístico, que nos é revelado em cada esquina nas prosas cheias de história. O dialeto loco de chique do ponta-grossense carrega em suas nuances os causos de um povo que se orgulha de suas raízes. Cada palavra, cada entonação, cada expressão trazem a identidade da região. Mas, carcule loco do céu, o que torna a fala dos ponta-grossenses tão tchunai?

Essa riqueza expressiva não é fruto do acaso. A cidade se tornou, ao longo dos séculos, um caldeirão cultural, onde diferentes modos de falar se misturaram, criando algo único e cativante. Para compreender essa singularidade, é preciso dar um mergulho na história da cidade, revisitar os fatos que moldaram essa linguagem e explorar as diversas influências que a compuseram.

Identidade verbal

A jornada começa com os tropeiros, figuras centrais na formação da identidade da cidade. Além do gado que transportavam entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, esses viajantes traziam também cultura, costumes e, claro, modos de falar. As suas longas jornadas pelas estradas do interior do Brasil deixaram marcas nas regiões por onde passaram, e Ponta Grossa, como um dos principais pontos de parada, foi particularmente influenciada por eles.

A cidade se desenvolveu como um importante ponto de parada para os tropeiros e, mais tarde, como um dos principais centros rodoviários e ferroviários do sul do Brasil. As ferrovias, como a Estrada de Ferro do Paraná e a São Paulo – Rio Grande, também desempenharam um papel fundamental na formação do dialeto local. Elas não apenas conectavam Ponta Grossa a centros econômicos vitais, mas também facilitavam o intercâmbio cultural, permitindo que novas influências linguísticas fossem incorporadas à fala princesina.

A chegada de imigrantes alemães, italianos e poloneses também contribuiu significativamente para a riqueza do vocabulário da cidade. À medida que viajantes e moradores locais se encontravam, as suas vozes se misturavam e as diversas formas de falar se fundiam, gerando uma identidade verbal própria. Essa fusão de culturas deu origem a um dialeto que, embora tenha raízes na história, continua a evoluir, refletindo as mudanças sociais e culturais que a cidade experimentou ao longo do tempo.

Mosaico cultural

Com o tempo, as variações linguísticas se unificaram, criando um mosaico cultural que se reflete até hoje na fala dos ponta-grossenses. Segundo a professora Marina Legroski, do curso de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o “ponta-grossês” é um dialeto que se adapta, que absorve novas influências. “O dialeto ponta-grossense, com as suas variações e adaptações, foi essencial na construção da identidade da cidade e carrega hoje as marcas de um passado vibrante”, aponta, mencionando que a fala local é mais do que um simples meio de comunicação: é um símbolo de resistência cultural, uma prova da capacidade dos ponta-grossenses de preservarem a sua história mesmo em meio a mudanças constantes.

“O dialeto ponta-grossense, com as suas variações e adaptações, foi essencial na construção da identidade da cidade e carrega hoje as marcas de um passado vibrante” (Marina Legroski, professora do curso de Letras da Universidade Federal do Paraná)

Essas particularidades da fala acabam sendo transmitidas de geração em geração, fazendo parte da identidade cultural da cidade. A advogada Andressa Faria, de 34 anos, é um exemplo dessa transmissão cultural. Natural de Ponta Grossa, ela absorveu desde cedo as expressões e o modo de falar da região. Em suas conversas informais, o dialeto flui naturalmente, sem que ela precise pensar nas palavras que escolhe. No entanto, fora da cidade, a advogada frequentemente precisa “traduzir” as particularidades de sua terra natal. Em uma ocasião, ao usar a expressão “bafo quente” para descrever o calor intenso, percebeu que a pessoa ao lado interpretou como uma crítica ao seu hálito. De forma similar, teve de explicar a uma professora de fora do Paraná o significado de seu espantado “ade mesmo”.

A advogada ponta-grossense Andressa Faria absorveu desde cedo as expressões e o modo de falar da região. Quando está fora da cidade, ela frequentemente precisa “traduzir” as particularidades do dialeto local

Esses momentos de confusão são, para Andressa, uma prova de como o dialeto ponta-grossense é único, repleto de expressões que carregam significados profundos para quem vive na cidade, mas que podem ser incompreensíveis para os de fora. Andressa reconhece as peculiaridades de seu dialeto e, em situações que exigem maior formalidade, adapta a sua fala.

Diversidade e identidade

A diversidade linguística da cidade também reflete a diversidade social e geográfica da região. Segundo Marina, à medida que se afasta do centro urbano e se aproxima das áreas periféricas e rurais, as diferenças na fala se tornam mais evidentes. Um exemplo disso é a pronúncia do /s/ no final das palavras. “É mais provável que os falantes da cidade pronunciem o /s/ final do que os falantes da periferia ou zona rural”, diz a professora.

Essa observação é apenas uma das muitas que revelam como o dialeto ponta-grossense é dinâmico e multifacetado. Outro elemento distintivo é o /r/ retroflexo (ou “r caipira”), uma marca registrada da fala ponta-grossense, especialmente entre os jovens. Em palavras como “altar” e “porta”, esse /r/ é pronunciado de forma peculiar e forte, diferenciando-se das formas mais suaves do “r” presentes em outras regiões. Esse traço tem raízes históricas nos falares do Rio Grande do Sul, trazidos pelos tropeiros.

A professora Márcia Cristina do Carmo, doutora em Estudos Linguísticos pela Unesp/Ibilce e professora do curso de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), observa que os ponta-grossenses também tendem a suprimir o /r/ final em verbos, como em “vou falá”, mas o mantêm em verbos inventados, como “vou gatár”. Além do /r/, há outras características que distinguem o sotaque de Ponta Grossa. Entre essas características, segundo Márcia, está a preservação do som “e” ao fim de palavras como “leite” e “quente”. Enquanto em outras partes do país essas palavras terminam com o som de “i”, em Ponta Grossa o “e” é mantido, evitando a suavização comum em outras regiões. Esse detalhe, segundo Márcia, é um reflexo da forte identidade linguística da cidade.

“As variedades linguísticas do dialeto são influenciadas por fatores sociais, como classe socioeconômica, faixa etária, escolaridade e até gênero” (Márcia Cristina do Carmo, professora do curso de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa)

Descobertas recentes

Entre as descobertas mais recentes relacionadas ao dialeto local, Márcia cita uma pesquisa de Izabely da Cruz Bicudo, orientada por ela e apresentada como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Licenciatura em Letras na UEPG. Diante da dificuldade de coleta de dados no período de isolamento social provocado pela pandemia, Izabely fez um estudo sobre palavras recorrentes à pandemia no português falado em dois telejornais locais.

A então acadêmica observou que havia tanto pronúncias de “covid” no gênero masculino, como em “positivados com o Covid”, quanto no feminino, como em “atendimento da Covid”. Sobre a pronúncia de “covid”, o estudo apontou que a grande maioria (96,3%) pronunciou como “covid[i]”, inserindo uma vogal [i] no final e palatalizando o /d/, o que não costuma ser pronúncia prototípica da variedade de Ponta Grossa em vocábulos portugueses. Compare-se com a pronúncia de “onde” e “arde”, por exemplo.

“Restam perguntas para futuros estudos: isso ocorreu por ‘covid’ se tratar de empréstimo? Por não corresponder à fala espontânea, já que eram programas televisivos? Ou a variedade ponta-grossense está, aos poucos, mudando a sua pronúncia no final de palavras com /te/ e /de/? Respostas a essas perguntas só serão possíveis a partir da realização de estudos futuros na área da Linguística”, observa Márcia.

O futuro

O futuro do dialeto ponta-grossense é incerto, como é o caso de qualquer língua em constante evolução. Conforme o tempo passa, a língua continua a se transformar, incorporando expressões e preservando outras como preciosidades culturais.

Ponta Grossa ressoa com vozes que carregam histórias, culturas e identidades, refletindo a rica tapeçaria de uma comunidade que valoriza as suas raízes e abraça a evolução. A linguagem não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas uma celebração da vida em todas as suas nuances. Assim, ao andar pelas ruas da cidade, não se ouvem apenas palavras, mas o pulsar de uma população inteira. E, com toda essa riqueza linguística, não tem como não tá se abrindo para um papo loco de bão, depois de um dia exaustivo, quando sobra só o pó da gaita.

Um abraço pro gaiteiro!

PEQUENO DICIONÁRIO DO “PONTA-GROSSÊS”

Ade: expressão de espanto. A palavra surgiu da abreviação da expressão “há de ser verdade”
Andandinho: passeando
Animar de teta: xingamento
Atorá: cortar caminho
Carcule loka do céu: imagine
Carpie o trecho: ir embora
Crendios pai: incrédulo
Dois palito: rapidinho
Ele te qué: alguém tá chamando
Esgualepado: mal arrumado
Ingrupir: enganar
Jaguara: sem vergonha
Firme co zuk?: tudo bem? (A expressão vem do político Luiz Carlos Zuk, quando se lançou candidato a prefeito de Ponta Grossa, em meados dos anos 70)
Fuja loco: sair de uma situação complicada
Loko de bão: muito bom
Loko de jaguara: muito sem vergonha
Malemar: não estou bem
Paia: sem graça
Passar de fianco: passar de lado
Pior que é memo: concordando com algo
Pra mais de metro: muito além
Piá do djanho: menino levado
Que tar?: o que acha?
Ratiando: reclamando
Se apinche: vai com tudo
Tá se metidando: se exibindo
Tchunai: algo especial e charmoso
Só o pó da gaita: cansado
Um abraço pro gaitero: fim de conversa
Virado no guede: muito louco, bravo
Zóiudo: invejoso

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #303