Quinta-feira, 28 de Novembro de 2024

Coluna Lettera: ‘Como anda a sua xícara?’, por Francielly da Rosa

2024-09-26 às 18:50
Foto: Freepik

Tenho a impressão de que algo se rompeu aqui dentro, enquanto ouvia cada uma daquelas palavras destrancando portas que eu nem sabia que existiam no cômodo dessa casa. Fiquei pensando que bobeira era aquela que ameaçava escorrer pelos olhos, revelando tamanha fragilidade. Ela foi desembrulhando o pequeno pacote cheio de espumas e isopor para, depois, revelar o tom branco e alvo do objeto de porcelana esmaltada que se ocultava lá no meio. Olhei ao redor e percebi, só depois, que havia, no lampejo do sonho, entrado numa loja de porcelanas.

Fiquei um tanto aturdida enquanto ouvia e concordava com o que me era dito. Ela seguia desembrulhando o pequeno objeto para descobrir que a porcelana estava revestida de uma fina camada de um material mais rígido. Cada nova ponta que aparecia, revelando a nudez do objeto alvo, causava pequenas palpitações que me faziam desviar o olhar, como se tomassem de mim algo que eu gostasse muito, mas que não recordasse mais que tinha guardado.

Já não havia em mim o impulso que a impedisse de revelar a verdadeira identidade do ínfimo objeto. Pelo contrário, havia uma cumplicidade com o ato de desembrulhar, mas, ao mesmo tempo, certa recusa íntima. De um lado, o pronto aceite para a revelação; de outro, uma ansiedade ligeira que tumultuava o núcleo de emoções que advinham de lados que já não sabia identificar.

Mas, para o meu espanto, ela não precisava mais retirar o embrulho do meio dos papéis e espumas que cuidavam do objeto frágil, nem raspar a casca dura que o envolvia. Por algum motivo maior, ela podia vê-lo no interior, desnudo, frágil, límpido, e isso me assustou por certo.

— Veja como o pacote fica muito mais leve quando você retira toda essa carga desnecessária que o envolve! — E eu apenas ouvia muda.

— Por que esse objeto carrega esse peso que não lhe pertence?! Qual a necessidade disso?! — Um sorriso meio frouxo foi a única coisa que escapou.

Não soube dizer ao certo como aquele punhado de papel e isopor viera a recobrir excessivamente o objeto. Ficava extasiada como quem, tendo há muito tempo um anel no dedo da mão direita, só descobre tardiamente a pequena inscrição que o decora.

Como um vento gentil que varre a poeira dos móveis, cada palavra foi entrando, destampando, abrindo, deixando emergir uma sensação estranha e emocional… como se todos os sentimentos se misturassem num tumulto de vozes e, por guardá-las há tanto, agora já não conseguia saber quem é que falava primeiro.

De repente, lentamente, ela virou o embrulho, revelando uma pequena alça trincada da porcelana, e disse:

— Ninguém é perfeito, e nem poderíamos ser! Nós não somos perfeitos!

Silêncio. Cabeça baixa e um suspiro.

— Ela será amada por ser quem é… e não precisa da validação dos outros. Que medo é esse da rejeição?!

Tive vontade de responder, dizendo-lhe:

— Mas quem é que, adentrando uma loja de porcelanas, escolheria uma xícara de alça remendada? Que valor tem aquilo que já foi quebrado e que não anda novo?

Antes que pudesse emendar qualquer outra palavra num complemento de frases que estava prestes a dizer, ela redarguiu, como se adivinhasse o que eu ia falar:

— Todo aquele que busca uma xícara para si e tem consigo olhos de arte e de experiência de vida bem sabe que uma xícara de alça partida ainda vale mais do que qualquer outra. A trinca traz a experiência, o erro, o conserto, o processo… E então aquele que a tem para si a aprecia pelo belo detalhe entalhado e colorido de amarelo ouro na linha do remendo.

Não quis dizer mais nada. Saí da loja de porcelanas com o pacote desembrulhado nas mãos. Queria atirá-lo fora, depois queria aconchegá-lo no peito como um presente que me fosse caro. Queria correr gritando, mas também queria o refúgio do silêncio. Uma reviravolta no peito ainda formigava, dando indício de que portas foram abertas, portas que eu já havia me esquecido que existiam.

Pude olhar-me no espelho apenas no dia seguinte, depois que um pequeno silêncio, entrecortado pelo barulho da água da pia, me fez olhar para as mãos automáticas que lavavam os pratos.

Terminada a tarefa, voltei para o refúgio do quarto, parei diante do espelho, olhando para a marca dos olhos cansados, e disse para a imagem refletida:

— Você não é perfeita, xícara!

Sem entender muito bem o porquê, umas lágrimas escapuliram pela fresta dos olhos. Não pude entender nada. A xícara permanecia em mãos, meio desembrulhada, a alça trincada e colada com uma marca de tinta em tons de amarelo ouro no traço da trinca.

O reflexo no espelho sorriu e disse-me:

— Tu choras não porque sentisses necessidade de ter a xícara perfeita, mas porque só agora percebe que teus esforços em servir os outros sufocam e fragilizam a tua estrutura. Carregaste por tanto tempo o peso daquilo que não era teu que agora olhas para as rachaduras e não sabes o que fazer. Era tanto o medo do abandono da xícara que a cobriste tanto com papel de embrulho que chegaste a esquecer até mesmo do desenho bonito que lhe estava contornado na face… Agora olha para tua xícara e chora, porque não há nada verdadeiramente teu a preenchendo. Então, xicarazinha, esquenta a tua água, prepara o teu chá e vai ao teu próprio cuidado! Não te importes mais com aquilo que podem achar de ti e dos teus detalhes, não te esforces tanto para carregar a água que mate a sede do outro, mas dedique-se à satisfação da tua sede. Cuida de si e não espera nada, nem validação, nem elogio… Aprende a viver bem com as tuas marcas, retirando os papéis que lhe ocultam a verdadeira beleza, pois não há beleza maior do que ser verdadeiramente quem és!

Os lábios permaneciam mudos diante do espelho. Ali dentro, um punhado de portas escancaradas se refletiam. Tive vontade de voltar correndo para a loja de consertos daquela mulher, tive vontade de dizer-lhe num grito:

— Como pode abrir todas essas portas aqui dentro?!

Depois, queria abraçá-la longamente, agradecendo por isso.

Ao lado da minha imagem no espelho, pude observar a sábia senhora da loja de porcelanas. Ela sorria. Surpreendi-me com a sua presença, mas, antes que pudesse perguntar como ali entrara, ela disse-me, sorrindo:

— A chave sempre foi você!

E sumiu, deixando-me diante do espelho com a xícara em mãos e um grande sorriso no rosto.

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.