Segunda-feira, 23 de Setembro de 2024

Brasil supera 400 mil mortes por COVID-19 apenas 36 dias após totalizar 300 mil

2021-04-29 às 15:32

No início de abril, uma carta aberta assinada por mais de 30 cientistas, pesquisadores e economistas defendia a adoção de um conjunto de medidas com recomendações para conter o avanço da Covid-19 no Brasil, entre elas, um lockdown nacional organizado por prefeitos, governadores e pelo governo federal. A proposta, no entanto, foi ignorada. Menos de um mês depois, nesta quinta-feira (29), o país ultrapassou os pela doença, chegando a 400.021 mortes e 14.541.806 casos confirmados, de acordo com dados do consórcio de imprensa.

Foram necessários apenas 36 dias para somar mais uma centena de milhares de mortes. O país ultrapassou 300 mil mortes por Covid-19 no dia 24 de março, dois meses e meio após ter chegado a 200 mil mortos, em 7 de janeiro de 2021. Já esta marca demorou pouco mais de cinco meses após a pandemia chegar aos 100 mil mortos, o que ocorreu em 8 de agosto de 2020.

O Brasil hoje é segundo país do mundo a romper a barreira de 400 mil vidas perdidas pela Covid-19 e apenas nos quatro primeiros meses de 2021, o país já soma mais óbitos pela doença do que o registrado ao longo de todo o ano passado.

Para os especialistas ouvidos pelo iG , ignorar soluções e subestimar o perigo do vírus são fatores que estão na raiz de todos os problemas que levaram o país ao colapso.

Região central de Manaus após reabertura do comércio
Região central de Manaus após reabertura do comércio

Não há coordenação nacional

Ana Maria Malik, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro do conselho da Associação Latina Para Análise dos Sistemas de Saúde (ALASS), que também assinou a carta, explica que ter um lockdown nacional de uma vez não é tão simples e precisaria de uma coordenação central para ser efetivo.

“Alguns estados e municípios se preocuparam mais do que outros. Alguns locais resolveram, inclusive, ignorar as medidas de isolamento social e a população não deu a atenção necessária”, avalia.

Ela lembra que algumas cidades até tiveram regras mais restritivas, como a proibição de circulação de pessoas em alguns horários do dia e a limitação do funcionamento do comércio e serviços. A professora da FGV esclarece, no entanto, que medidas de lockdown precisam de outras políticas e estratégias em conjunto, como auxílio financeiro para que a desigualdade sociais não aumente ainda mais.

O epidemiologista Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade de Pelotas (UfPel), celcula que três em cada quatro mortes pela Covid-19 ocorreram pela falta de coordenação nacional no combate à pandemia.

“A falta de coordenação nacional é responsável por três de cada quatro mortes no Brasil. Hoje saiu um comentário na (revista científica britânica) Nature falando em uma de cada duas. Acho que ainda é conservador, acho que três de cada quatro, com os dados que eu vejo. Não há dúvida de que muito mais gente morreu e seguirá morrendo hoje no Brasil do que seria o naturalmente esperado pelo curso natural da pandemia”, afirmou Hallal.

Mortes continuam elevadas

O pico no número de mortes por Covid-19 do Brasil hoje já é considerado um “platô” de 3 mil mortes diárias, no qual as estatísticas não pioram, mas resistem a dar sinais de melhora. Em boletim extraordinário divulgado no último dia 28, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) reafirma a tendência de manutenção deste cenário.

“Na visão dos pesquisadores do observatório, o quadro atual pode representar uma desaceleração da pandemia, com a formação de um novo patamar, como o ocorrido em meados de 2020, porém com números muito mais elevados de casos graves e óbitos, que revelam a intensa circulação do vírus no país”, afirma a entidade. Caso mantido este patamar, sem redução, isso pode significar mais 200 mil mortes até o meio do ano.

“Quando a gente fala em morte, não é uma estatística, são pessoas com família, se morrer apenas um que poderia não ter morrido, ja é horrível”, acrescenta Ana Maria Malik.

Ariano Massuda
Foto: DivulgaçãoEduardo Massuda alerta que enquanto não há vacina para todos, ou um tratamento efetivo contra a doença, o único caminho que demonstrou eficácia são as restrições urbanas

O médico sanitarista Eduardo Massuda, professor da FGV, que também assinou a carta com recomendações aos governistas, afirma que um dos principais problemas no enfrentamento da Covid-19 no Brasil é que não há ação conjunta.

“O que temos hoje é são medidas descoordenadas nessa guerra contra o coronavírus. E se cada um faz de um jeito diferente, a chance de vencermos é pequena. Quando a gente observa o Brasil com 400 mil mortes pela Covid, com a estrutura do SUS e sua capacidade de organizar resposta às emergências de saúde pública, vimos que a situação poderia ser muito diferente”, argumenta.

“Em uma comparação, outros países que tiveram melhor capacidade de enfrentar a pandemia, como a China, não chegaram a superar 5 mil mortes, no total, desde o começo da pandemia”, avalia Massuda.

Natália Pasternak, microbiologista e fundadora do Instituto Questão de Ciência
Natália Pasternak, microbiologista e fundadora do Instituto Questão de Ciência

Natalia Pasternak, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência, concorda que falta coordenação nacional, mas avalia que após mais de um ano da pandemia, é preciso admitir que isso não vai ocorrer.

“A segunda opção é existir uma coordenação entre os prefeitos e governadores para que a gente possa ter fechamentos organizados , com acordos entre as regiões. Vai acabar sobrando para esses gestores fazerem o trabalho do governo federal, mesmo sem estarem equipados para isso”, aponta a cientista.

A especialista diz que o problema é estabilizar o número de mortes em um patamar muito alto e as pessoas acharem isso bom. “Quando em outros países essas estatísticas seriam alarmantes e motivo para fecharem tudo. Chegar nesse platô de 3 mil mortes não pode nunca ser considerado normal e nem motivo de alegria”.

Perspectiva para os próximos meses não são boas

Uma vida livre do vírus ainda é um sonho muito distante para os brasileiros. Para Natalia Pasternak, as perspectivas para os próximos meses não são boas, principalmente porque o Brasil não tem como aumentar drasticamente a vacinação , em um cenário mundial que o imunizante contra a Covid-19 é escasso e com outros países chegando na frente.

“Não fizemos a lição de casa e nem o planejamento adequado em setembro e outubro do ano passado quando tivemos a oportunidade de comprar imunizantes dos grandes fabricantes. Esnobamos . A gente tem agora a Índia passando por um surto grave que vai impactar a vacinação no Brasil”, afirma a pesquisadora.

“Então vamos ficar nos arrastando no primeiro semestre nesse abre e fecha do comércio, com melhoras e pioras dos índices, até que mais vacinas cheguem no segundo semestre para que a gente consiga avançar”, acrescenta Pasternak.

O último balanço da vacinação contra Covid-19, da quarta-feira (28), aponta que 30.740.811 pessoas já receberam a primeira dose, 14,52% da população brasileira. A segunda dose já foi aplicada apenas em 14.621.694 pessoas (6,90% da população do país) em todos os estados e no Distrito Federal. No total, 45.362.505 doses foram aplicadas em todo o país.

O médico Eduardo Massuda alerta que enquanto não há vacina para todos, ou um tratamento efetivo contra a doença, o único caminho que demonstrou eficácia são as restrições urbanas .

“Diferente do ano passado, esse ano a pandemia foi mais intensa, com picos concentrados em várias regiões do país. Hoje, não há outra alternativa que não um lockdown nacional por um período de tempo suficiente para reduzir a transmissão da doença no Brasil”, argumenta o professor.

Na visão do pesquisador, a pandemia vai permanecer por um bom tempo no Brasil e a saída é apostar no monitoramento diário das infecções
Na visão do pesquisador, a pandemia vai permanecer por um bom tempo no Brasil e a saída é apostar no monitoramento diário das infecções

Para ele, no momento em que se afrouxam as medidas de restrição de mobilidade urbana, não há outra coisa a se esperar, se não um retorno mais forte da pandemia. “Isso é algo esperado, é só olhar o que está acontecendo na Índia, se a gente não mantiver as restrições podemos chegar em patamares maiores do que já tivemos”, compara.

“Só vamos conseguir esse controle quando a população estiver suficientemente vacinada, como é o exemplo de alguns países com alta cobertura vacinal, que reduziram o número de óbitos, mas não o de casos. Isso significa que as medidas de restrições precisam continuar, por mais que se tenha vacina, justamente para evitar a disseminação dos vírus e de novas cepas resistentes aos imunizantes”, explica Massuda.

O epidemiologista Pedro Hallal considera o Brasil como uma “fábrica de variantes” do novo coronavírus (Sars-CoV-2). Para o especialista, hoje o país representa uma “ameaça global” do ponto de vista sanitário e epidemiológico.

“O Brasil já é uma fábrica de variantes . A gente não ouviu falar da variante da Nova Zelândia, da variante australiana. E a gente não vai ouvir falar porque quanto mais circula o vírus, mais surgem novas variantes. Então, o Brasil representou e continua representando uma ameaça de saúde global por causa disso. Porque era um lugar onde ele não estava mais descontrolado”, pontua.

Na visão do pesquisador Adriano Massuda, a pandemia vai permanecer por um bom tempo no Brasil e a saída é apostar no monitoramento diário das infecções, principalmente com o aumento da testagem.

“Vamos precisar construir uma inteligência epidemiológica para monitorar o número de caso e o tipo de vírus que está circulando, porque no momento que se encontre novas cepas , é fundamental tomar medidas para bloquear essas variantes. O que aconteceu em Manaus, por exemplo, com a identificação de uma nova cepa e a transferência de pacientes para outras regiões do país, ajudou a disseminar a variante para todo o Brasil”, critica o médico sanitarista.

do IG