há um dia
Giovanni Cardoso

Eu, pessoalmente, não estava lá. Mas o primo de um amigo - jornalista na Alemanha - me contou como tudo se passou. Cruzando as versões, percebe-se que a rabugice da direita alemã se sobrepôs aos fatos. Eis, portanto, um breve relato de como as coisas de fato devem ter ocorrido para que não pairem dúvidas sobre o que pensam os jornalistas alemães - e boa parte da comitiva desse mal-amado Merz.
Sim, o chanceler fez a pergunta aos presentes, querendo saber quem toparia ficar em Belém. Ninguém levantou a mão, antes de tudo, por um motivo prosaico: ninguém queria perder a carona. Mas a maioria foi além nas justificativas, com aquela franqueza que só aparece quando a bagagem já está fechada e o check-out é inevitável.
Um deles, corpo atlético de corredor da Maratona de Berlim, sussurrou à colega ao lado: “Me apaixonei pela maniçoba; se eu ficar, vou acabar engordando, porque isso é maravilhoso.” E descreveu, quase poético, o perfume do tucupi invadindo a rua, o jambu fazendo o lábio formigar, a panela borbulhando como se cantasse “fica”. A colega, aliviada pela confissão, abriu o coração e lembrou as passagens pelas sorveterias com os melhores sorvetes do mundo: “Eu também preciso ir embora, não consigo parar de provar esses sabores. É açaí com tapioca, é bacuri, é cupuaçu, é taperebá… Coisa dos deuses - ou do diabo, vai saber. Preciso me libertar.” Contou ainda que, à beira da Estação das Docas, o pôr do sol tinha a cara de um filtro que as redes sociais jamais conseguirão copiar.
À frente dos dois, um rapaz franzino, óculos de fundo de garrafa, virou-se e emendou: desde que chegou, tem ido a vários lugares dançar brega com aquelas aparelhagens monstruosas. “Não aguento mais essa vida alegre e despojada dos cabanos. Esse som é uma droga: vicia. A gente não quer sair, não quer parar de dançar. Preciso ir embora antes de não conseguir viver sem isso.” E fez o favor de descrever a cena: a pista acesa, a guitarra chorando, o DJ gritando o nome do bairro, e um mar de gente sorrindo como quem muito bem sabe que felicidade é coisa séria.
Outra jornalista, já inteirada da conversa, opinou: “Imagina ficar mais tempo aqui, com essa simpatia toda, essa alegria contagiante, e achar que isso é o normal - para depois voltar à Alemanha, onde o povo só fica um pouco mais animado depois de litros de chope. Melhor ir logo, para doer menos quando voltar.” Ela contou do Ver-o-Peso às cinco da manhã, as cores de peixe que ela jurava que só existiam em catálogo, o cheiro de ervas que parece farmácia da avó, a chuva de Belém que cai pontual como alarme e passa como brisa - e a gentileza de quem oferece guarda-chuva para desconhecido como quem oferece notícia quente.
Nisso, o primo do meu amigo - o que estava lá - arrematou: “E nem falamos do açaí de verdade, não o congelado: grosso ou fino, puro, com farinha de tapioca ou com camarão… Já sinto saudade.” E emendou um inventário para convencer qualquer ministro: carimbó na praça, círio na parede do botequim, banda de aparelhagem passando na caminhonete, manga caída do quintal, rede na varanda, conversa comprida, e aquele céu que muda de humor três vezes na mesma tarde.
Outro da comitiva, que até então mantinha pose de crônica policial, confessou que foi vencido pelo silêncio da mata no passeio de barco. Disse que o verde de lá tem barulhos: de folha, de água, de bicho - e que, pela primeira vez em anos, desligou as notificações sem culpa. “Ficar mais tempo seria perigoso”, riu. “A gente se acostuma a respirar.”
Veio então um coro discreto, quase clandestino, de motivos para não levantar a mão quando o chanceler ofereceu a permanência: o risco de adotar “bom dia” como regra, de chamar desconhecido de “meu patrão”, de decorar o cardápio por cheiro, de medir o tempo pela maré e não pelo relógio, de usar a interjeição égua. Um perigo para a austeridade burocrática, convenhamos. Perigoso também para a crônica mal-humorada, que sobrevive de reclamar do mundo. Ali, as queixas tiram férias.
Entre risos e despedidas, já dentro da Van em direç∫ao ao aeroporto, alguém ainda brincou: “Se a gente fica, volta escrevendo crônica feliz. Nossa editora não deixa.” E outro: “Se a gente fica, começa a achar que o mundo não é um relatório de produtividade.” O motorista do transfer, que ouviu tudo pelo retrovisor e só falou no fim, resumiu com sabedoria de quem viu muita chuva: “Aqui o povo gosta de cuidar e de ser cuidado. É por isso que dá vontade de ficar.”
Logo, Merz, você que deveria ter contado a história inteira - e não contou -, e ainda resolveu desdenhar dos anfitriões, receba meu único conselho: aproveite que está na Alemanha e vá tomar… um açaí. Se não encontrar do bom, volte para Belém. A carona a gente dá. mas só de vinda.
Oliveiros Marques é sociólogo, publicitário e comunicador político
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