Sábado, 24 de Maio de 2025

Artigo: ‘Responsabilidade científica sobre o caso da jaguatirica Pituca’, por Erika Zanoni Fagundes Cunha

2025-05-23 às 18:15
Foto: Redes Sociais

Hoje, quero falar com responsabilidade científica sobre um caso que gerou comoção pública: o da jaguatirica Pituca.

Pituca não vivia em cativeiro. Ela cresceu solta, cercada por vínculos afetivos com humanos e outros animais, em um ambiente multiespécie, onde recebia alimentação crua, estímulos constantes e cuidado individualizado. Essa criação precoce com humanos gera um fenômeno chamado imprint, ou impregnação, que modifica algumas percepções em relação a seres humanos.

A retirada brusca desse ambiente e sua colocação em um centro de triagem sem vínculos ou estímulos adequados configura uma situação de estresse crônico. E a ciência é clara: o estresse crônico não é apenas uma emoção passageira. Ele altera o comportamento, a fisiologia e a estrutura do cérebro. Pesquisas com felinos mostram que esse tipo de trauma pode causar microlesões irreversíveis, afetando aprendizado, memória, e levando ao desenvolvimento de transtornos mentais graves.

Felinos, especialmente jovens como Pituca, têm alta plasticidade cerebral, o que os torna extremamente sensíveis ao ambiente. Por isso, a separação da sua família multiespécie não representa apenas um desconforto — mas um dano neuropsiquiátrico severo. Acreditar que esse animal poderá ser utilizado para reprodução em cativeiro, é condená-lo a uma vida de sofrimento emocional, pois filhotes criados assim não poderão ser reintroduzidos na natureza.

No Direito Animal, reconhecemos que animais são sujeitos de vida e de dignidade própria. Isso significa olhar não para os interesses futuros da espécie, mas para a história de vida desse indivíduo. O que ele aprendeu, o que ele sente, o que é melhor para ele.

A neurociência mostra que vínculos afetivos são neuroprotetores, liberando ocitocina – o chamado ‘hormônio do amor’ – essencial para o bem-estar dos mamíferos. Pituca tinha isso. Tinha vínculo, cuidado e alegria. E perdeu tudo isso de forma abrupta.

Direito Animal é ciência, que a psiquiatria veterinária existe, e que casos como o de Pituca precisam ser olhados sob essa ótica, respeitando sua história, sua saúde emocional e sua dignidade.

A melhor decisão para Pituca, como indivíduo, não está no futuro genético da espécie, mas sim no respeito à vida que ela já construiu.

Erika Zanoni Fagundes Cunha é médica veterinária com doutorado em zoologia e pós-doutorado em Direito Animal. Ela atua há mais de 20 anos na interface entre bem-estar, neurobiologia e psiquiatria animal.