Sexta-feira, 28 de Fevereiro de 2025

Artigo: ‘Sobre as vaias em Claudia Leite’, por Oliveiros Marques

2025-02-28 às 10:37

A sonora e ritmada vaia recebida por Claudia Leite na abertura do Carnaval da Bahia tem motivos muito objetivos para ter acontecido. O combustível pontual e absolutamente justificável para o episódio foi a atitude da cantora de retirar da letra de uma de suas músicas o nome de Iemanjá, uma orixá iorubá. Isso levou, inclusive, o Ministério Público da Bahia a abrir uma investigação.

Claudia Leite se construiu como artista através do axé music, corrente cultural absolutamente vinculada à cultura afro-brasileira. E agora, por se dizer evangélica, patrocina um comportamento que corrobora o que Abdias Nascimento caracterizou como “O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado”, em texto apresentado em 1977 no Segundo Festival de Artes e Culturas Negras, em Lagos, capital da Nigéria.

Ao retirar a referência ao nome da Rainha do Mar da letra da música, Claudia Leite reproduz o que até pouco tempo atrás fazia o Estado ao confiscar objetos da arte afro-brasileira e as imagens de sentido ritual em terreiros de religiões de matriz africana, levando-os para departamentos de polícia ou escolas de psiquiatria. Fez o mesmo que a ditadura militar fez em determinado censo ao retirar a referência à raça do questionário. Buscou inviabilizar a cultura, a religião, a vivência negra no Brasil.

No tópico “O embranquecimento cultural: outra estratégia de genocídio”, Abdias destaca que, diferente do racismo norte-americano ou do existente então na África do Sul — sendo aquele óbvio e este legalizado —, no Brasil o racismo é “difuso e profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país”. O professor ressalta que, sob a farsa da democracia racial, sobra a negros e negras a “assimilação, aculturação, miscigenação”, que escondem a visão eurocêntrica — portanto branca — da “intocada crença na inferioridade do africano e seus descendentes”.

A cultura é um importante instrumento das elites para o desempenho de seu desejo de controle social e apagamento da presença negra em nossa sociedade — ontem e hoje. Por isso, as vaias a Claudia Leite são um grito contra o genocídio do negro brasileiro, que o professor Abdias Nascimento destaca existir e persistir em nossa sociedade. Que mais gritos como esses ecoem pelos territórios brasileiros. E, se tiver que ser em forma de vaias, que assim seja.

Oliveiros Marques é sociólogo, publicitário e comunicador político.

Referência bibliográfica: O genocídio do negro brasileiro: processo de racismo mascarado | Abdias Nascimento | Editora Perspectiva