Marvada, veneno, branquinha, água que passarinho não bebe… São vários os apelidos dados à cachaça que tentam expressar o sabor único e a ardência que desce pela garganta dessa que é uma das bebidas que mais representam o Brasil. Devido à sua importância cultural e histórica, que se mistura com o desenvolvimento do país, o destilado ganhou uma data comemorativa só dele, o Dia Nacional da Cachaça, celebrado todo 13 de setembro.
E não é por acaso: nesta mesma data em 1661 houve o episódio conhecido como “Revolta da Cachaça”, levante popular contra a colônia portuguesa que levou à legalização da bebida – até então proibida de ser comercializada por aqui. Em 2009, durante a feira Expocachaça em Belo Horizonte, o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac) decidiu celebrar a data como o Dia Nacional da Cachaça, que perdura até hoje. Um dos símbolos mais importantes da gastronomia e do povo brasileiro, sua história no território nacional começou bem antes, remetendo aos primórdios da colonização.
Segundo o Ibrac, a teoria mais aceita de seu surgimento diz que os portugueses improvisaram uma bebida destilada a partir de derivados do caldo da cana-de-açúcar, que produzia o mesmo efeito prazeroso da bagaceira, destilado de casca de uva.
Não se sabe ao certo o local onde ocorreu a primeira destilação da bebida, mas pode-se afirmar que se deu em algum engenho de açúcar no litoral do Brasil entre os anos de 1516 e 1532. A cachaça pode ser, assim, considerada como o primeiro destilado da América Latina, antes mesmo do aparecimento do Pisco, da Tequila e do Rum – bebidas ilustres do Peru, do México e de Cuba, respectivamente.
Outrora um item importante para trabalhadores de baixa renda, a bebida inicialmente era conhecida como “pinga” antes de se tornar mais conhecida pelo nome de cachaça. Agora, é o ingrediente chave de caipirinhas, sendo vendida no exterior por preços comparáveis aos do uísque.
Segundo o Anuário da Cachaça 2021, que reflete dados do ano anterior, os produtores de cachaça totalizam 955 estabelecimentos registrados no Ministério da Agricultura, um aumento de 6,8% em comparação a 2019.
A produção da “marvada” se concentra principalmente no sudeste, com Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Santa Catarina entre os cinco maiores estados produtores da bebida a nível nacional. Sobre as marcas da bebida, em 2020 havia 4.743 delas espalhadas pelo país, em que 586 municípios possuem registros de estabelecimentos produtores – o que representa 10,5% do total de cidades do Brasil.
Com tamanha produção, você sabe o por quê algumas cachaças são mais “brancas” e outras mais amareladas? A diferença se dá no envelhecimento. A produção industrial em larga escala engarrafa imediatamente a bebida após sua destilação, dando origem à versão “branca” ou “prata”, que tende a ser mais barata. Já nos alambiques de cobre ou nos barris de madeira, a bebida é deixada a envelhecer ou repousar, em que, com o passar do tempo, acaba adquirindo muitas vezes uma cor amarelada ou ouro, em que o processo é mais demorado.
De acordo com o Ibrac, há uma série de madeiras usadas no país que realçam o sabores da cachaça, como Amburana, Jequitibá, Amendoim, Bálsamo, Ipê, Freijó, Eucalipto, Castanheira, além do conhecido Carvalho. “A tradição de madeiras brasileiras surge fundamentalmente no norte de Minas Gerais, um momento em que os produtores de cachaça começaram a buscar independência da Coroa portuguesa, porque barril de carvalho só se conseguia com eles. Desde então, o Bálsamo e Amburana são as duas madeiras mais usadas no envelhecimento depois do Carvalho”, diz Paulo Sagarana, antigo dono dos bares paulistanos Sagarana e Van der Ale, um dos maiores conhecedores da bebida no país.
Segundo o entusiasta, o Bálsamo traz notas herbais, de anis e erva-doce, enquanto a Amburana confere um paladar de especiarias como a baunilha, o cravo e a canela.
Embora as primeiras “branquinhas” tenham sido difundidas em Pernambuco e outros grandes produtores de cana, foi em Minas Gerais que o destilado ganhou força e características únicas. Atualmente, o estado é o maior produtor de cachaça em alambique do país – a artesanal, feita em menor escala mas de melhor qualidade – com 200 milhões de litros por ano, respondendo pela metade da produção nacional, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas (Seapa).
Assim, a produção também é o ganha pão de muita gente: a atividade no estado gera mais de 100 mil empregos diretos e cerca de 300 mil indiretos. O Anuário da Cachaça 2021 aponta que Minas segue na dianteira e possui 397 registros de estabelecimentos produtores de cachaça – o estado também sai na frente no número de registro de marcas (1.908) e de produtos (1.402).
Mas por que a cachaça mineira se tornou tão famosa? A tradição que atravessa gerações, o terroir mineiro – a relação mais íntima entre o solo e o microclima local – e a produção em alambiques de cobre podem ser algumas das explicações, como indica Gilson de Assis Sales, superintendente de abastecimento e cooperativismo da Seapa.
Com tamanha tradição e produção, é de se esperar que o município que mais concentra produtores de cachaça seja de Minas Gerais. Salinas, no norte do estado, é a cidade que tem mais produtores no país: são 23 ao todo, que somam também 166 marcas da bebida.
Situado a 600 km de Belo Horizonte, o município tem pouco mais de 42 mil habitantes e a produção do destilado corresponde a uma de suas mais importantes atividades econômicas.
Não por acaso, ganhou a alcunha de Capital Nacional da Cachaça em 2018 por meio de uma lei federal. Anos antes, em 2012, foi fundado ali o Museu da Cachaça para celebrar a tradição do destilado na região. A Festa da Cachaça também ocorre periodicamente e movimenta tanto o mercado cachaceiro quanto o turismo regional.