O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu soltar Ana (nome fictício), de 41 anos, que foi presa sob a acusação de ter furtado duas garrafas de 600 ml de coca-cola, dois pacotes de macarrão instantâneo e suco em pó de um supermercado da zona sul de São Paulo, em 29 de setembro. A decisão foi publicada nesta quarta-feira.
Desempregada e mãe de cinco filhos, ela confessou o furto ao ser detida em flagrante, alegando que subtraiu os alimentos porque “estava passando fome”.
O valor dos produtos totalizava R$ 21,69. Por duas vezes, a Justiça de São Paulo negou um pedido de habeas corpus da Defensoria Pública. O caso chegou ao STJ, e, nesta quarta, o ministro o Joel Ilan Paciornik decidiu pela soltura da acusada e pelo arquivamento do processo por considerar que o valor do furto é insignificante.
Para Rafael Muneratti, defensor público do Estado de SP com atuação em Brasília, a história não termina aí. “Ela foi solta, era o que todo mundo queria, mas o problema dela não está resolvido. Ela vai sair da prisão e ainda tem cinco filhos para criar, quatro deles são menores de idade e ela precisa alimentá-los todos os dias”, diz ele, que atuou diretamente no caso depois que o processo chegou em Brasília.
“Ela terá muita dificuldade para conseguir um emprego formal, porque no Brasil dificilmente as empresas contratam egressos do sistema carcerário. O empregador vê que a pessoa tem passagem pela Justiça e desiste. Também não há um sistema estruturado de atendimento a pessoas que deixam as prisões”, diz Muneratti em entrevista à BBC News Brasil.
“Então, minha pergunta é a seguinte: o que a sociedade ganha com a prisão de uma pessoa como ela, que furtou comida porque estava com fome? Para mim, não faz sentido. A prisão dessas pessoas não é a solução, pelo contrário, criamos um novo problema. Estamos vivendo uma crise social. Às vezes, as pessoas estão desesperadas e não conseguem nem comprar ossos ou espinha de peixe”, diz.
O defensor acredita que penas alternativas, como prestação de serviços à comunidade e reeducação profissional, seriam mais adequadas em casos de furto de pequenas quantias em dinheiro ou de comida, o chamado furto famélico (quando o crime é praticado para comer).
Após o furto, a juíza Luciana Menezes Scorza atendeu a um pedido do Ministério Público e converteu o flagrante em prisão preventiva, argumentando que Ana colocava em risco a ordem pública.
“A conduta da autuada é de acentuada reprovabilidade, eis que estava a praticar o crime patrimonial. Mesmo levando-se em conta os efeitos da crise sanitária, a medida é a mais adequada para garantir a ordem pública, porquanto, em liberdade, a indiciada a coloca em risco, agravando o quadro de instabilidade que há no país”, argumentou a magistrada.
No dia 7, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou a soltura de Ana sob o argumento de que ela é reincidente – ela já havia sido condenada por furto de fios elétricos em 2014, por exemplo.
“Inviável a aplicação do princípio da insignificância ao furto praticado por acusado que ostenta diversas condenações transitadas em julgado, inclusive por crimes contra o patrimônio, o que evidencia a acentuada reprovabilidade do seu comportamento, incompatível com a adoção do pretendido postulado”, argumentou o desembargador Farto Salles.
Insignificância
Desde 2004, existe um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que casos de furto famélico devem ser arquivados, seguindo o princípio da insignificância.
A norma, que não é obrigatória, orienta juízes a desconsiderar casos em que o valor do furto é tão irrisório que não causa prejuízo à vítima do crime. Comida, sucata, produtos de higiene pessoal e ínfimas quantias em dinheiro, por exemplo, são considerados insignificantes pela Justiça.
Mas nem sempre isso acontece. Como mostrou a BBC News Brasil em junho, defensores públicos apontam que juízes e desembargadores de diversos tribunais pelo Brasil estão mantendo a custódia e condenando à prisão pessoas acusadas de furto famélico ou de pequenos valores, mesmo com um cenário de aumento da fome no país.
Com os recursos dos advogados, esses processos – considerados de simples resolução na primeira instância – acabam abarrotando os tribunais superiores e causando mais lentidão à Justiça.
Segundo defensores, a reincidência do réu é o principal argumento usado por juízes para não aplicar o princípio da insignificância. Ou seja, para parte do Judiciário que acredita em endurecimento das penas como solução para o problema da criminalidade, a reincidência agrava a condição do réu e, por isso, a custódia é mantida.
No entanto, defensores públicos e alguns ministros do STJ e do STF, como Rosa Weber e Gilmar Mendes, costumam defender que a reincidência do réu não muda o fato de que o valor do furto é insignificante.
Foi justamente esse o argumento do ministro Joel Ilan Paciornik, do STJ, para soltar Ana, que havia furtado macarrão e refrigerante.
“Cuida-se de furto simples de dois refrigerantes, um refresco em pó e dois pacotes de macarrão instantâneo, bens avaliados em R$ 21,69, menos de 2% do salário mínimo, subtraídos, segundo a paciente, para saciar a fome, por estar desempregada”, escreveu.
Para o defensor Rafael Muneratti, que atuou no caso, a história de Ana é um “retrato da miséria pela qual passa o Brasil”.
“Infelizmente esses casos vão continuar acontecendo, porque estamos vivendo uma crise social. O que vai acontecer se nós jogarmos todas essas pessoas em prisões já superlotadas? Não é um ‘liberou geral’, acho que precisa existir alguma medida judicial, mas não acredito que prender as pessoas seja a melhor solução”, diz.