Sexta-feira, 10 de Maio de 2024

4 de Agosto – Dia do Sacerdote: Relembre uma entrevista especial com o Padre Wilton Lopes; assista ao vídeo

2021-08-04 às 10:02

Nesta quarta-feira, 4, é celebrado em todo o Brasil o ‘Dia do Sacerdote’. No Brasil, a CNBB estima que existam mais de 27 mil padres em atividades nas paróquias.

Para comemorar a data, o D’Ponta News resgatou uma matéria especial, realizada para o projeto de ‘realidade aumentada’ da Revista D’Ponta, em dezembro de 2017. O entrevistado foi o Padre Wilton Moraes Lopes, da comunidade terapêutica de mesmo nome e da Copiosa Redenção.

A reportagem foi do jornalista Eduardo Godoy, com edição de Eduardo Gusmão, imagens e edição de vídeo da Amma Filmes, fotos do André Waiga e direção geral de Eduardo Vaz.

 

“Nos tornamos prisioneiros da virtualidade”

Com críticas ao uso excessivo do mundo virtual, padre Wilton Moraes alerta sobre o que ele chama de doença da atualidade: a solidão

Tarde de segunda-feira, 4 de dezembro de 2017. Em uma sala com as paredes tomadas de obras de arte, numa casa da Vila Estrela, o ilustre e simples padre Wilton Moraes Lopes recebeu a equipe da D’Pontaponta para uma profunda entrevista. Após um forte aperto de mão, que mostrou toda sua vitalidade, o sacerdote já logo indicou que gostaria de falar sobre a condição humana. E experiência, ele tem de sobra para tratar do assunto. Com 62 anos de vida, sendo 40 deles dedicados à vida religiosa, padre Wilton possui um reconhecido trabalho voltado à recuperação de jovens dependentes químicos. Nascido na cidade de Tesouro, no Mato Grosso, e cidadão ponta-grossense desde 1977, foi ele quem fundou a Congregação das Irmãs da Copiosa Redenção de Maria Mãe da Divina Graça, em 1989. Hoje, a Copiosa Redenção está presente em sete estados brasileiros. São sete comunidades terapêuticas, duas de reinserção social, além de casas de trabalho pastoral e comunidades na Itália. Com fala mansa, voz grave e olhar sereno, padre Wilton falou sobre a solidão, os perigos das inovações tecnológicas, o papel da arte e empoderamento feminino. Leia a seguir a entrevista e assista aos bastidores da conversa no vídeo.

[A REPORTAGEM CONTINUA APÓS O VÍDEO]

 


Quais são as principais dores da vida humana que o senhor tem presenciado?

A principal dor humana do tempo de hoje é a solidão. As pessoas nunca tiveram a experiência de viverem juntas nesta urbanização moderna. São vários prédios e muitas pessoas, mas nunca a solidão esteve tão presen-te como nos dias de hoje.


E o que isso causa nas pessoas?

Primeiro, uma profunda incapacidade de autovalorização, uma incapacidade de ter um sentido de vida por não ter sido valorizada, por não ter amigos, sentindo-se inútil, vazia. Causa também depressão, ansiedade e profundo sentimento de vazio existencial. A pessoa não encontra o sentido da sua vida. Esse sentido só é possível a partir do conjunto de relações humanas, e a solidão é justamente a ausência do enriquecimento das relações humanas. Há uma tendência ao individualismo. Isso leva a uma doença: o ser humano só se realiza comunicando e sendo capaz de dar e receber amor. Individualismo é uma doença moderna.


O senhor acha que a inovação tecnológica tem alguma relação com isso?

Muita relação, aliás toda relação. Isso se chama “crise da virtualidade”. O que é virtualidade? É a capacidade de você substituir a relação humana com relações que não são mais humanas. Você tem mil amigos no seu celular e não tem um amigo concreto na vida. Isso vai levando a sociedade a ficar doente. Nós perdemos a capacidade de olhar um no olho do outro. Nossos olhos estão doentes, porque eles se voltaram para baixo no celular. Perdemos o dom do olhar, perdemos a fascinação do olhar, perdemos a capacidade de sentir o outro. Sentimos virtualidades que não são reais. Isso vai trazer uma profunda doença na relação humana. Ninguém é feliz com a virtualidade. A virtualidade,  com o tempo, se torna uma doença, se torna uma dependência e se toma um motivo de droga no futuro, quando cada pessoa tem que ter o seu celular – e se não tiver, ele vai se sentir em profunda crise, profunda ansiedade, profunda necessidade do contato virtual. Virtualidade é um tema de muito estudo atual por suas consequências psicológicas. As pessoas não querem mais perder tempo e construir contatos reais e humanos. É muito fácil você manter quem você quer, quem você gosta, quem te agrada e então [quando quer] você deleta a pessoa. Eu tenho pavor do verbo deletar, porque deletar uma pessoa é uma coisa muito triste. É você descartar uma pessoa da sua vida com um simples toque no botão. Pessoas não são para serem deletadas, a pessoa é um valor extraordinário. Essa crise vai se aprofundar ainda mais. Nossos olhos não estão mais fixados no horizonte, os olhos fixaram-se no umbigo, no celular.

 

Quais os sentimentos humanos que estão sendo perdidos ou transferidos para o mundo virtual?

É a profunda perda de humanização. Valores da pessoa humana estão sendo perdidos, como amor, solidariedade, amizade, carinho, necessidade de relacionamento, necessidade de amar e a amizade. Estamos perdendo os valores essenciais do que é ser uma pessoa humana.


Isso é muito perigoso para nossa sociedade…

É muito e será mais triste ainda porque as consequências serão graves, com uma incapacidade de ter pessoas maduras. Isso pode levar a uma sociedade cada vez mais fechada no virtualismo: eu não preciso de ninguém, eu tenho tudo no meu celular.

O senhor comentou que pode causar uma dependência. Isso pode chegar a outros tipos de vícios também? O senhor tem visto isso na prática?

Tenho visto sim. Eu atendo muitas pessoas que reclamam justamente da falta de comunicação real, sentem um grande vazio.

E qual a saída para isso? O que o senhor diz para essas pessoas?

Digo que é necessária uma disciplina de vida para não perder a capacidade de amar e criar relacionamentos bons. É bom ter amigos e ter uma capacidade de entender que um relacionamento é vida, é saudável. A única forma de comungar a vida é através do amor relacional. Portanto, eu tenho um grande bloqueio mental contra o celular nesse aspecto, porque ele está destruindo a nossa capacidade de ver – e o fato da vitalidade está na comunhão. Nós nos tomamos prisioneiros da nossa própria virtualidade.

 

Nós chegamos aqui e vimos que tem bastante quadros espalha-dos por esta sala. Qual o papel da arte nesse processo?

A arte é uma forma de você expressar os seus sentimentos mais profundos. Agora, por exemplo, eu gosto e quero expressar uma dor de compaixão com o pobre, através da arte. Existe uma arte para enfeitar salas de pessoas ricas. Mas existe uma arte que você denuncia também: a pessoa pobre, a pessoa que luta e que sofre. Como esse quadro que tem aqui. É uma mulher no lixão. Ninguém vai querer esse quadro para enfeitar a sala, mas pra mim é um quadro muito importante, porque fazendo isso eu estou denunciando com a minha arte a miséria, a realidade que ninguém quer ver, a crueldade da vida, a fome… Então, eu tenho que ter um contato como mundo real e eu faço isso através da arte.


De onde o senhor tira tanta inspiração?

Vou te mostrar um exemplo. Este quadro é de uma criança que naufragou no Mar Meditertâneo e o corpo dela foi lançado na praia. Então, eu peguei essa foto, que é conhecida mundialmente, e coloquei aqui a imagem de Maria. Eu dei a ela o título de Nossa Senhora das Dores de Todos os Refugiados, a Mãe das Dores da Humanidade, a Mãe dos Oprimidos, a Mãe dos Imigrantes, a Mãe dos que morreram afogados no Mar Mediterrâneo. Eu rezo muito por isso. E um quadro muito significativo pra mim. Então, minha inspiração vem da realidade, de coisas que me chocam, me tocam. Eu não quero fazer arte pra enfeitar o olho e a sala de ninguém, tanto que não me interesso mais em vender quadros nem fazer exposição. Eu quero quadros que eu possa ficar com eles, pensar e meditar. Um dia, por exemplo, eu pego esse quadro, olho pra ele e aquele tema vai ser minha oração do dia, rezando pelas 400 mil pessoas que morreram na Guerra da Síria. Eu tenho muito medo que, com tantas notícias, nós achemos que isso é normal, que é normal morrer, que é normal a guerra. E não é! Dentro de nós tem que haver um motivo que nos faça não comungar com essa realidade. O quadro me faz ir longe: eu penso em quem era o pai dessa criança, quem era a mãe, se a mãe morreu ou sobreviveu, aonde nasceu na Síria, aonde pegou o barco pra fugir, aonde caiu e em qual praia foi encontrado. E uma verdadeira oração.


Se o senhor se reflete na realidade, o que o senhor está pintando atualmente?

Eu estou fazendo um esforço de pintar mulheres em situação de sofrimento: uma mulher carregando água, outra no lixão, uma amassando comida no pilão, outras duas mulheres lavando roupa. Agora estou buscando uma foto de uma mulher chorando uma criança morta com uma bala perdida. Mas ainda não achei, estou procurando a foto ideal.


E o que o senhor acha das discussões sobre o empoderamento da mulher?

É um bom caminho, porque ainda estamos longe de encontrar uma situação de verdadeiro respeito à dignidade da mulher. A mulher ainda é violentada, sofre muitas mortes, ainda é sofrida, marginalizada. A mulher ganha menos que os homens, tem preconceitos, são molestadas no transporte coletivo. A mulher não tem paz pra andar com dignidade. Esses estupros coletivos, por exemplo, são coisas horríveis. Existe um caminho que a educação poderá ajudar. Mas não podemos perder a esperança nunca. A Bíblia diz assim: “não deixe apagar a mecha que ainda fumega”. Não devemos deixar apagar a esperança das lutas e das campanhas, porque sempre há uma luz acesa. Há muita coisa sendo feita, mas ainda é pouco.


O senhor completou, recentemente, 40 anos de vida religiosa. Quais foram as principais crueldades que o senhor presenciou?

Foi o mundo das drogas. Entreguei muito a minha vida a esse trabalho, foram mais de 30 anos. Lá eu vi muita coisa: eu vi a morte, eu vi o suicídio, eu vi o desespero de pais e mães, eu vi pais e mães sendo roubados e se tornando prisioneiros das suas próprias casas, pais e mães não conseguindo dormir à noite com medo do filho… Eu vi tantas coisas. Mas, o que mais me chocou – e me  choca – é atualmente ver que o projeto social do governo, que tem reponsabilidade de investir no combate a essa doença social, que é a dependência, não se manifesta em todo o potencial que poderia se manifestar. E aqueles poucos lugares em que o povo é atendido também não existe ajuda do governo. Quem ajuda é a comunidade, mas o governo não investe. O governo não tem sensibilidade para essa noção da promoção da vida dos jovens, da mortalidade pela violência social. A violência é terrível, nós vivemos realmente em uma guerra não declarada de um país para o outro, mas dentro do nosso próprio país.

O senhor escolheu fazer uma igreja social. Por que essa escolha?

Porque o Evangelho nos fala que, nos últimos momentos, no juízo final, Jesus vem e nos faz algumas perguntas, e ele não fala de religião, nem de igreja. Ele fala assim: “eu tive fome, você me deu de comer; eu tive sede, você me deu de beber, eu estive preso e você me visitou; eu estava enfermo e você me visitou; eu era estrangeiro e você me acolheu. Tudo o que você fez ao menor, aos mais pequeninos, foi a mim que você fez”. Pra mim, aí está o eixo fundamental. Uma religião verdadeira é essa: ver o próprio Cristo em cada rosto e servir o enfermo, o faminto, o que passa frio, o doente, o preso, o que não tem casa. Isso pra mim é a essência da minha fé. Eu acredito que não pode haver religião desencarnada de um olhar real. Eu só posso ver Cristo naquele que pode ser a imagem e figura encarnada dele. É no humano que eu vejo o divino. É no humano, no sofrido, no preso, no drogado que eu vejo Cristo.


Gostaria que o senhor resumisse pra gente: qual a sua missão de vida?

A minha missão sempre foi de servir, estar disponível e não ser alienado da dor humana. Uma vez que somos ministros de Deus, somos referência ao apoio, à ajuda, à necessidade. No capítulo 34 do profeta Ezequiel, Deus fala assim: “Ai dos maus pastores que não cuidam das suas ovelhas”. Portanto, o sacerdote tem que ser este bom pastor, que cuida das suas ovelhas. Ele não marca hora, está disponível para quem precisa encontrar apoio, abrigo, acolhimento. Essa é a missão da gente.


O que o senhor mais aprendeu sobre a vida?

Eu aprendi que a vida só tem sentido se você não vive só pra você. Se você faz da sua vida um dom para o outro, esse é o sentido da vida.