Sábado, 20 de Abril de 2024

Coluna Draft: “A Teologia do descanso”, por Edgar Talevi

2021-08-30 às 08:54

A Teologia do descanso

“E, havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito” (ARA).

Milênios há em que o trecho bíblico supracitado vem sendo lido, mas pouco compreendido pela humanidade. De modo raso, em análise simplista, muitos creem ter Deus estabelecido uma relação de causa e efeito físico-mental a Ele mesmo, tendo descansado de sua criação – desculpem-me os evolucionistas, por quem denoto insuspeito apreço -, mas este colunista instatui o criacionismo, como vertente teológica e ideológica para que, em meio a tantas contingências epistemológicas, estabeleça-se como parâmetro basilar de fundamentação técnica para experimentação do tema em pauta.

Deus, em sua asseidade – teoria escolástica que significa a distinção divina dos demais seres – prescinde de revitalização física, porque subsiste em forma imaterial, espiritual, conforme disserta o evangelista João, em 4:24 e confirma Karl Barth, teólogo neo-ortodoxo.

Mas, para toda a criação, existe a necessidade-urgência da restauração do equilíbrio, qual seja físico, mental, espiritual, portanto Gênesis estabelece princípio para a humanidade, tendo o próprio Deus como exemplo.

Vejamos alguns dados coletados pelo questionário on-line da pesquisa COVIDPsiq, realizado pela Universidade Federal de Santa Maria. O estudo revelou que 65 por cento dos participantes da pesquisa relataram piora da saúde mental após medidas de distanciamento social. Ainda, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 90 por cento da população mundial sofrem com o estresse.

Algumas circunstâncias específicas avolumam os números apresentados, a saber, rotina diária e árdua de trabalho, inabilidade emocional diante das intempéries da vida familiar, profissional e relacional, bem como a própria falta de perspectiva em relação ao futuro, que incita apreensão e aumenta a ansiedade. Não é incomum afirmar que a ansiedade é uma forte candidata a mal do século.

A pergunta que se levanta é: como a Teologia pretende trabalhar o tema do descanso do ser humano, sem deixar de lado a necessidade de conciliar o repouso com os tantos afazeres da vida moderna?

A resposta para essa questão está centralizada no entendimento do valor da própria existência e segue alguns princípios. Vejamos:

Jesus, segundo relata o evangelista Lucas, em 5:16, retirava-se para lugares solitários e orava. O primeiro princípio, após acurada análise exegética e hermenêutica do capítulo 5, do evangelho de Lucas, estabelece a necessidade de estar só, não solitário, mas reservar um tempo para si.

Permitir-se momentos de leveza, à procura de saciedade da alma mediante hobby pode suscitar augusta satisfação psíquica e expandir a sensação de compensação diante das agruras da vida.

Segundo o teórico behaviorista Clark Hull, manter a calma interna é uma maneira de controlar impulsos, prerrogando ao indivíduo o tão necessário equilíbrio de si mesmo. A esse respeito, Jesus se encontra em posição de exemplo por sua natureza eminentemente imperturbável, mantendo a prática da oração como transcendência, tornando-a seu mecanismo de escape.

Abraham Kuyper, em sua obra “Calvinismo”, afirma que o homem foi criado em perfeita relação com Deus. Isso posto, a oração, a meditação e as formas de transcendência, segundo o teólogo, têm o poder de elevar a alma a um estado de imorredoura paz.

O segundo princípio é revelado no Salmo 40 “Esperei com paciência no Senhor, e ele se inclinou para mim, e ouviu o meu clamor” (ACR). Davi, nessa passagem, entrega aos leitores o princípio da paciência. Descansar, no hebraico, equivale a confiar, segundo a análise textual do Salmo 40. Isso, portanto, equivale a dizer que as medidas açodadas envidadas pelo homem contra os dissabores da vida nada contribuem para a resolução dos problemas, pelo contrário, suscitam cada vez mais ansiedade e sentimento de incapacidade diante das crises.

Nem sempre é possível ter o controle das crises. Admitir inabilidade em tratar com elas não demonstra fraqueza. Controlar o desejo de domínio é virtude, diria até mesmo catártico e evidencia maturidade emocional. Ser paciente é coisa de gente grande, inteligente, elevada, portanto essencial à reparação da alma.

O terceiro princípio é evidenciado no evangelho segundo Marcos, 4: 38, em que Jesus dorme dentro de um barco, em meio a uma tempestade, no momento em que os discípulos entravam em desespero. A encetadura dessa reflexão dispõe da confiança em meio à tempestade, seja esta metaforizada tal qual a vida se oferece.

É impossível a todos nós termos qualquer garantia ou evidência do futuro, tão incerto seja este. A única irretratável, inescapável e irrevogável certeza de que dispomos sobre o futuro é a morte, realidade à qual ninguém escapa. Outrossim, planos são, evidentemente, necessários, mas podem se revelar frustrados, pois a nada poderá o homem aceder sobre o que virá. Então, a confiança em que há propósito em e para todas as coisas pode dar sentido à vida e gerar conforto em momentos de desarmonia.

O filósofo existencialista Sören Kierkegaard, em sua obra “O desespero humano”, disserta sobre a confiança em Deus: “o modo de socorro deixa a Deus, e contenta-se em crer que a Deus tudo é possível”. O auspicioso pensador outorga a Deus a confiança de que necessita a raça humana, pois crer no transcendente evita a simples sublimação Freudiana e eleva o espírito ao entendimento de que o verdadeiro controle escapa às mãos humanas, mas encontra guarida na providência do próprio criador.

Perceba, o nobre leitor, que princípios não são garantias de que tudo se resolva, mas possibilidades de que existem alternativas passíveis de serem aferidas. A Teologia, como ciência, serve de vanguarda para o pensamento moderno do humano, implicando a necessidade de olhar para dentro de si e perceber o valor da própria existência.

Segundo o téorico inglês T. H. Huxley, a interrogação de todas as interrogações da humanidade consiste na determinação de qual é a posição do homem em relação ao universo. O mesmo pensamento pode ser encontrado em Max Scheler, fenomenólogo, em que este, de forma sucinta, afirma que a grande questão da filosofia é: “Que é o homem e que lugar e posição metafísica ele ocupa dentro da totalidade do ser, do mundo, de Deus”?

Jean-Paul Sartre, em seus ensaios, partiu do princípio de que a existência precede a essência. Para esse autor, existir equivale a bem mais que apenas viver, pois significa estar no mundo com o sentimento de pertença, de propriedade, de natureza.

Entrementes, o evangelho segundo Mateus, 16:26, fornece o último instrumento de que lança mão este artigo: “Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? (…). (ARA).

Quando se fala em perder a alma, muito se discute escatologicamente, a respeito de céu e inferno, reencarnação e carma, seja qual for o espectro religioso. Mas, permita-me o leitor, que fujamos à essa discussão infindável para, neste contexto, assegurar que muitas pessoas, mesmo bem-sucedidas, têm perdido sua alma para o trabalho extra, sem o devido tempo para si; perdido a alma de seus cônjuges, pela falta de simbiose, amor devoto, renovação de aliança, de empatia e cumplicidade; perdido a alma de seus filhos, por não perceberem um boa noite sôfrego destes, em que muito está sendo dito pelo não dito, dando-se a desculpa do cumprimento de agenda e compromissos que se notam mais importantes que a própria família; perdendo a alma de seus amigos, pela falta de tempo, tentando ganhar a vida, mas perdendo o tempo de existência no mundo.

Perder a alma, então, é desistir de si mesmo e da vida.

Fiquemos com a frase do maior teólogo da humanidade, Agostinho: “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti”.

Coluna Draft

por Edgar Talevi

Edgar Talevi de Oliveira é licenciado em Letras pela UEPG. Pós-graduado em Linguística, Neuropedagogia e Educação Especial. Bacharel e Mestre em Teologia. Atualmente Professor do Quadro Próprio do Magistério da Rede Pública do Paraná, na disciplina de Língua Portuguesa. Começou carreira como docente em Produção de texto e Gramática, em 2005, em diversos cursos pré-vestibulares da região, bem como possui experiência em docência no Ensino Superior em instituições privadas de Ensino de Ponta Grossa. É revisor de textos e autor do livro “Domine a Língua – o novo acordo ortográfico de um jeito simples”, em parceria com o professor Pablo Alex Laroca Gomes. Também autor do livro "Sintaxe à Vontade: crônicas sobre a Língua Portuguesa". Membro da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes. Ao longo de sua carreira no magistério, coordenou inúmeros projetos pedagógicos, tais como Júri Simulado, Semana Literária dentre outros. Como articulista, teve seus textos publicados em jornais impressos e eletrônicos, sempre com posicionamentos relevantes e de caráter democrático, prezando pela ética, pluralidade de ideias e valores republicanos.