Quarta-feira, 24 de Abril de 2024

Coluna Draft: ‘O Mito da Caverna e a Anticiência’, por Edgar Talevi

2022-01-12 às 09:53

O Mito da Caverna e a Anticiência

Em pleno século XXI deveria ser impensável a necessidade de autoafirmação da ciência em relação à sua importância na construção do processo civilizatório. Isso ganha contorno surreal a partir do contexto pandêmico por que passa a humanidade e a dependência que todos temos da medicina e do conhecimento técnico-científico aplicável à solução que poderá pôr fim ao sofrimento das pessoas. Deveria, mas não é!

Platão, em “A República”, talvez a mais complexa e completa obra de sua autoria, contendo um compilado de dez livros, formula suas teorias através de digressões a respeito de estética, arte e o conhecimento humano. A obra narra o diálogo de Sócrates e Glauco e, no livro VII, apresenta o famoso Mito da Caverna.

O Mito compreende uma narrativa de alguns prisioneiros que vivessem, desde a infância, sob a escuridão de uma caverna, com pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles. A luz chega-lhes de uma fogueira acesa em uma colina que se ergue por detrás deles. Entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Ao longo da estrada, homens transportam objetos e passam por ela. As sombras, no entanto, é tudo que os prisioneiros podem ver dos movimentos externos, compondo o mundo a que eles estão acometidos e sendo tudo que eles conhecem.

Em dado dia, um dos prisioneiros se liberta, conhecendo o mundo exterior. Voltar aos antigos amigos e revelar-lhes o mundo externo seria correr o risco de ser arrazoado e ter de disputar para provar a verdade a respeito das sombras. Assim se estabelece o Mito.

O fato inegável na história é que o certo a ser feito é elucidar aos prisioneiros a descoberta além do mundo das sombras. Mas a verdade poderá não agradar e perder a relevância diante da escuridão. Sem dar mais spoilers da narrativa, podemos acrescentar que a metáfora é essencial à revelação do cenário intrigante e indigesto no campo da Educação hodiernamente.

A Ciência parece ocupar espaço burocrático, não mais técnico na sociedade, segundo a visão de movimentos anticiência. Isso é demonstrado pela crescente e arredia aversão à contribuição de implicações científicas diante da COVID-19. O discurso em favor de medicamentos reconhecidamente sem eficácia contra a COVID, segundo afirma a academia médica, bem como a importância das vacinas, cujo mérito nem deveria ser alvo de questionamento depois da erradicação de diversas doenças infectocontagiosas ao longo da história humana, estabelecem um perigoso risco à Educação, à Pesquisa Científica e à Humanidade como um todo. Tal precedente é deveras nocivo à lógica da perpetuidade da civilização e democracia do conhecimento.

Exemplos de ataques à Ciência, contudo, não são inéditos. Muitos foram fruto de um establishment que preconizou a manutenção de status quo de determinadas instituições que mantinham o interesse em hegemonizar seu papel de protagonista nas oligarquias de poder e opinião.

A Ciência, no entanto, sempre pleiteou a veracidade dos fatos por meio da comprovação. Costumamos dizer, lançando mão do senso comum, que contra fatos não prevalecem teorias. Se isso for verdade, é coerente afirmar que o laboratório científico é fundamental à fenomenologia da vida humana, pois salvaguarda a sistematização por meio de observação, identificação, pesquisa e explicação de determinadas categorias de fenômenos e fatos, e formulados metódica e racionalmente. Sendo assim, prescinde de defesa em seu favor, pois a metodologia de que consta da práxis científica é assegurada por hipóteses, experimentação e conclusões, garantindo, em todo o processo, o que podemos chamar de “ateísmo metodológico”, ou seja, neutralização de preconceito ou uma hermenêutica que possibilite, em qualquer fase do processo de construção de conhecimento, uma pré-concepção do que venha a ser descoberto.

Isso tudo garante a lisura do processo científico. Mas, em tempos em que se aceleram teorias conspiratórias, parece não ser o suficiente. A onda das “Fake News” invade o imaginário popular e arroga a si o poder de estabelecer paradigmas de pensamentos sob os quais a humanidade se põe às sombras, com pernas e pescoços amarrados, dentro de uma caverna, em subserviente observação dos fatos. Nada do que se passa no exterior compõe a realidade. São ilusórios os movimentos de quem está fora da caverna.

Quando alguém se desprende, por meio do conhecimento construído do mundo exterior, entra em conflito com os que se acostumaram com as sombras. Dá-nos, portanto, a ideia de que a escuridão basta aos que aceitam as correntes do obscurantismo e da resignação. Pouco se acrescenta a um pensamento apostado, assentado e categórico, sem a percepção de que tudo se transforma, até mesmo a própria concepção da realidade. As sombras não fazem jus à forma dos homens.

Voltando ao Mito da Caverna, a alegoria tem seus significados concebidos pela ampla exegese do texto Platônico. Os prisioneiros somos nós, pessoas que vivemos em nosso mundo limitado, presas em nossas crenças, sem que as contestemos.

A Caverna, por sua vez, equivale ao pensamento enganoso, errôneo ao qual estamos submetidos por muitos sensos comuns e assentos ideológicos. Já as sombras são distorções que simbolizam as opiniões erradas e o conhecimento preconceituoso que julgamos ser verdadeiro. Mas a luz, que poderá, em dado momento, ofuscar a visão de um recém-liberto, é o conhecimento verdadeiro, a razão.

Platão, em “A República”, metaforizou a relação que a sociedade tem com o conhecimento, a ponto de estar, cada vez mais, vivendo como prisioneira da caverna, apesar de toda informação e conhecimento que tem à sua disposição.

Notícias falsas, seguidas por discursos diversionistas, que põem em xeque o conhecimento científico, devem ser repelidas por meio de checagem da veracidade das informações e das fontes. Não obstante, o galanteio de teorias conspiratórias precisa ser abolido, em favor da promoção da verdade e da luz da realidade dos fatos.

Platão, de igual modo, ainda assemelha, em sua metáfora, as formas de governo que inutilizam a Ciência em razão de ideologias (termo anacrônico ao Mito, mas fundamental), que têm o potencial de implicar derrotas à Educação e ao sistema democrático.

Segundo Platão, existem duas maneiras de nossos olhos serem perturbados: pela passagem da luz à escuridão e pela da escuridão à luz. No primeiro, podemos considerar um processo feliz, em virtude do que podemos sentir pela descoberta da realidade da vida. No segundo caso, lamentaremos, pela caducidade da alma que se prende por amor às sombras.

Seja qual for o caso, sempre haveremos de buscar um motivo de felicidade. Mas que prefiramos a descoberta da luz a ofuscar nossos olhos, pois, com o conhecimento, haverá fecunda e perene germinação de vida.

Ainda em Platão, observamos, no mesmo livro VII, em que se encontra o Mito da Caverna, a impávida definição de Educação: “A Educação é, pois, a arte que se propõe este objetivo, a conversão da alma, e que procura os meios mais fáceis e mais eficazes de o conseguir”.

Quanto ao sistema que nos rege ideologicamente, afirmo: Qualquer semelhança, não é mera coincidência!

Coluna Draft

por Edgar Talevi

Edgar Talevi de Oliveira é licenciado em Letras pela UEPG. Pós-graduado em Linguística, Neuropedagogia e Educação Especial. Bacharel e Mestre em Teologia. Atualmente Professor do Quadro Próprio do Magistério da Rede Pública do Paraná, na disciplina de Língua Portuguesa. Começou carreira como docente em Produção de texto e Gramática, em 2005, em diversos cursos pré-vestibulares da região, bem como possui experiência em docência no Ensino Superior em instituições privadas de Ensino de Ponta Grossa. É revisor de textos e autor do livro “Domine a Língua – o novo acordo ortográfico de um jeito simples”, em parceria com o professor Pablo Alex Laroca Gomes. Também autor do livro "Sintaxe à Vontade: crônicas sobre a Língua Portuguesa". Membro da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes. Ao longo de sua carreira no magistério, coordenou inúmeros projetos pedagógicos, tais como Júri Simulado, Semana Literária dentre outros. Como articulista, teve seus textos publicados em jornais impressos e eletrônicos, sempre com posicionamentos relevantes e de caráter democrático, prezando pela ética, pluralidade de ideias e valores republicanos.