O domínio da norma culta da Língua Portuguesa não serve de parâmetro para “classificar” os falantes do idioma quanto à competência linguística. Todos acertam quando o assunto é a fala. Não deve haver discriminação no que respeita ao uso verbal oral da linguagem.
Estaríamos, com a supracitada tese, sendo permissivos quanto aos desvios gramaticais das regras que regem a Língua Portuguesa, convencionadas em documentos oficiais do idioma? A resposta depreende a concepção do que é, exatamente, a convenção linguística de normas e a que vale.
A escrita tem caráter universal, cuja necessidade é fazer-se valer de uniformização documental que ultrapassa limites territoriais internacionais. Basta-nos observar a implementação do novo acordo ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa, em 1990, que passou a ter vigência em 2009, com pleno uso em 2012. O tratado reuniu todos os países lusófonos a fim de unificar a escrita para que a Língua Portuguesa se tornasse ainda “maior” no tocante à sua ascensão e propagação mundial, facilitando a compreensão, na escrita, por meio de regras únicas e socialmente reconhecidas.
Entretanto, quando o assunto é a fala, percebemos que há quem julgue as pessoas pelo uso das normas “ortográficas” – regras de escrita -, cometendo discriminação e indevida classificação de status quo, de modo a permitir um despautério no respeitante ao ajuizamento de quem “sabe” e quem não conhece o idioma.
Neste contexto, uma obra torna-se fundamental à leitura a todos que pretendem aprofundar a relação com o idioma, sem que, para isso, sintam-se obrigados a decorar fórmulas para a utilização da Língua Portuguesa na prosa do dia a dia. Estamos tratando de “Preconceito Linguístico”, de Marcos Bagno. O livro é essencial à compreensão de que o idioma pode ensejar elitização de uns, em detrimento de outros, por meio da exclusão do conhecimento do arcabouço doutrinário do idioma.
No entanto, se pensarmos no uso do idioma como meio de comunicação e prática de linguagem, não há respaldo para a exclusão de qualquer falante. Isso ocorre porque as normas ortográficas – ressalvados os usos pertinentes a eventos específicos da linguagem – regem apenas a escrita, em documentos que estabeleçam a comunicação formal, em contextos de apresentação protocolar, oficial e acadêmico da Língua Portuguesa.
Ademais, quando o assunto é a fala, o campo é livre, pois não há normas que “vigiem” vicissitudes na relação dialética e dialógica entre os usuários do idioma. Nesta perspectiva, muitos discriminam a fala popular, do chão de nossa terra, de nossas regiões, tão lindas e carregadas de cultura e manifestações de insígnias semânticas que valorizam e geram construção, na prática, de nossa Língua máter.
Na obra de Marcos Bagno, é possível identificar alguns fatores que mistificam a Língua Portuguesa. Dentre eles, encontramos a frase “Português é muito difícil”. Isso se dá pelo fato de que estamos acostumados a uma escola/educação que se baseia em decorebas, ao melhor estilo da educação “bancária”, em que fórmulas são dadas e exigidas como símbolos de ascensão social e pertencimento ao mundo do conhecimento.
Desfeito o mito da relação idioma/cientificismo, dá-se a inclusão por meio do discernimento de que quem fala, conhece, pois todos somos fluentes em Língua Portuguesa; daí ser impossível dizer que Português é difícil, pois dominamos a fala e a compreensão do idioma.
Não obstante, Bagno apresenta outra concepção de exclusão quando o assunto é a linguagem, a saber, “O certo é falar assim porque se escreve assim”. Isso é uma lacuna de uma educação que preza o estabelecimento de uma uniformização cultural, que acultura por mecanismos ideológicos despóticos, ditatoriais, vistos no período nebuloso da educação tecnicista pós-golpe de 1964, em que o ensino era voltado à homogeneização de regras que mais excluíam que construíam uma sociedade linguística democrática no país.
O ranço da ditadura deixou marcas indeléveis na identidade cultural brasileira. A linguagem é apenas uma delas. Quando falamos, não necessitamos de regras que nos orientem a como usar os pronomes oblíquos átonos, por exemplo, com próclise, mesóclise e ênclise.
A mandioca, no Sul do país, recebe o nome de macaxeira, na região Nordeste. Isso é riqueza. Desconsiderar sotaques, regionalismos e particularidades de nosso povo é chafurdar no obscurantismo de uma educação tolhedora e coibitiva, que desmerece a construção de conhecimento em favor de uma manutenção de classes sociais dominantes.
Outra base de reflexão na obra de Marcos Bagno é a proposição de que “É preciso saber gramática para falar bem”. Concordo que a gramática é instrumento que qualifica o discurso, mas no plano ortográfico, ou seja, na escrita. A fala não requer, em contextos de rodas de conversa entre amigos e momentos informais de descontração, regras que impeçam o exercício da linguagem de modo leve, solto e fecundo. Vale ressaltar que a gramática normativa apenas ocorre a posteriori da fala. Primeiro falamos para, depois, a gramática ocupar-se de postular os efeitos da linguagem prática em seus documentos oficiais.
A metáfora muito bem construída pelo exímio professor Pasquale Cipro Neto, de que a linguagem se identifica com roupas, em que a escolha da fala se dá pela ocasião do uso é fundamental para que entendamos que o uso da linguagem depende do contexto, mas nunca apenas da regra. Evidentemente que, em uma palestra, não se lançará mão de informalidades e coloquialidades, mas a comunicação diária, no nicho pessoal, familiar e entre amigos, não necessita de convenções normativas.
Democratizar o idioma não é descontruir as manifestações populares e regionais do povo. Valorizar a Língua não é excluir a linguagem informal. Há muito mais na linguística popular do que sonha nossa vã gramática normativa. O processo de aculturação que vivemos nos bancos escolares não devem impor uma uniformização indevida, mas ressignificar a comunicação de modo a incluir a diversidade em prol de uma heterogeneidade cultural e inclusão de todos dentro de nosso patrimônio nacional, a Língua Portuguesa.