“Só Deus me tira daquela cadeira, disse o Presidente Bolsonaro, na marcha para Jesus.” Para além dessas palavras, vale lembrar de que, em postagem de setembro de 2020, no Twitter, o “Messias” da extrema direita, afirmou que:
“- O Estado é laico.
– Respeitamos a todos.
– Mas o nosso Governo é CRISTÃO”
Mas, afinal, há problema em que um governo, sob a égide de nossa Constituição se autodeclare cristão? Vejamos:
A concepção de Estado Laico já vem consagrado em nossa tradição constitucional desde a Constituição Republicana, mas recebeu maior establishment na Constituição Maior, de 1988. Deste modo, pode-se dizer que o conceito de Estado Laico está delineado em toda exegese e hermenêutica da Carta Magna com significados que prevalecem sobre os todos os entendimentos de Constituições anteriores à Cidadã, da década de 80.
No Estatuto Magno de 1988, a liberdade de expressão adquire vital e basilar importância à medida que fortalece a construção de um processo civilizatório por meio da dialética do debate público e amplo, em diversas esferas sociais, mas, ao mesmo tempo, reforça a tese, conforme reza o art. 220, que “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto neste Constituição.” Pode-se inferir, do texto Constitucional, que todos os cidadãos são livres no respeitante à opinião, ideias, ideologias, ideais e, não obstante, utopias, desde que regulamentadas pela indumentária Constitucional.
Entrementes, no tocante à celebração da laicidade do Estado, a CF 88 recorre ao arbítrio das liberdades individuais, de modo a promover a coexistência da pluralidade de matrizes religiosas em todo o território nacional, sem privilégios nem prerrogativas de mérito que estabeleçam hierarquia entre as estratificações religiosas praticadas no país.
É salutar trazer à baila o período colonial brasileiro, em que a hegemonia da igreja católica romana estabelecia suas nuances e estigmas de dogmas que se perpetuavam na sociedade. Havia, portanto, forte vínculo entre a Igreja e o Estado. Governos se prostravam ante a Igreja – não a Deus -, mas a gestores públicos – difira-se bem.
É certo também afirmar que no Brasil Império, a Maçonaria exerceu poderosa influência sobre a liberdade religiosa. A Ordem pregava o espírito prevalecente na época, da tolerância, racionalismo e da fé em Deus desvinculada do sacerdócio real.
Entretanto, o texto Constitucional de 1824 preceituava que a religião católica apostólica romana continuaria sendo a religião do Império. As demais religiões seriam permitidas em ambiente restrito, sem manifestação pública.
Destarte, somente no texto da Constituição de 1891 foi consolidada a separação entre Igreja e Estado. As Constituições de 1934 e 1937 repetiram, basicamente, os termos da CF 1981. A CF de 1967 manteve distintos os laços estatais dos eventos religiosos. Porém, somente com o avanço da CF 1988 é que, de fato, o texto deixou explicitamente clara a separação entre qualquer forma de união entre Estado e Igreja, tornando ambos ímpares, singulares e distoantes.
Segundo o texto Constitucional de 1988, “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança.”
Nesta perspectiva, percebemos que parte do excerto Constitucional supracitado parece ferido de chaga mortal ao citar ação proibitiva de “aliança” com Igrejas, sendo que determinados governos o fazem, agregando-se a elas. O Estado é Laico, não porque proíba crença em Deus ou seja ateu. Pelo contrário. A Constituição Brasileira não estabelece que o país seja Ateu, mas Laico, o que equivale a dizer que não deverá haver, sob nenhuma hipótese, permissões privilegiadas ou posições de governança baseadas em religião, crença ou, ao antônimo disso, na falta destas.
A pessoa do Presidente da República pode, da maneira como quiser, expor sua crença em Deus, por meio de quaisquer religiões com que tiver contato. Assim como poderá, da mesma forma, afirmar-se ateu.
No entanto, quando um ator político ou institucional se autodeclara Ateu ou Cristão, não o poderá fazê-lo em nome de um Governo, pois este é estabelecido infraconstitucionalmente, o que o torna ilegítimo caso se declare religioso.
O que fizer o Presidente da República, faça-o ele mesmo, em seu nome. Resta provado que o Chefe do Executivo exerce função de autoridade e representação, eleito pela nação, mas o Governo não pode privilegiar entes, religiões ou afins. Se assim o fosse, o que dizer das religiões de matrizes africanas? Por que nenhum governo se autodeclara crente em uma delas? Existiria alguma forma de preconceito? E quanto ao Candomblé e todas as demais religiões que não pregam o cristianismo? A democracia da maioria poderá criar flagelos irremediáveis em uma sociedade líquida, efêmera e na era da pós-verdade como esta em que estamos.
Quando um ator político causa a sensação de privilegiar determinado grupo religioso ou corrente dogmática e doutrinária, gera, ao arrepio da equidade, sob vício de Inconstitucionalidade, sensação de parcialidade, engrossando a fila do sectarismo e da segregação.
Uma sociedade liberta é aquela que assume a liderança e o poder diante de sua própria liberdade, não se omitindo do debate e buscando a lavra da pluralidade de ideias, democratizando os espaços públicos com o arcabouço artístico, religioso, racial, étnico, social e político que a nação possui.
Mas antes disso, é enfrentando os descaminhos e os desserviços dos que achicanam a boa política pela manutenção do status quo, sem que se pese ou pense no bem maior de uma nação, que se chega ao longe. E a trajetória tem data e local para que isso comece. Bem-vindo, Outubro de 2022.