Ordem e Progresso – insígnia positivista de Auguste Comte na Bandeira Nacional, evoca uma ortodoxia ablegada na sociedade brasileira desde sua gênese. E isso, em parte, é culpa de toda uma nação que abdica de seu poder demo-crático para compor o cabedal de estruturação política que impera no país republicano.
Única monarquia da América, no fim do século XIX, o Brasil assistiu à modernização e urbanização crescentes urgirem a necessidade de diálogo com as novas camadas sociais da época, tais como os empresários industriais, a classe média vinculada ao setor de serviços, que aspirava a uma maior liberdade e participação política e o embrionário proletariado, que reclamava uma mudança na organização e atuação do Estado brasileiro. A economia se diversificava e provocava transformações sociais e novos anseios políticos. Ademais, o campo religioso sofreu indigestas e contumazes interferências de Dom Pedro II, envolvendo ainda mais clérigos e leigos em favor de uma metamorfose social.
Para se salvar da crise, o Império teria de se reformar e renovar, mas as volumosas contradições fisiológicas na base de sustentação do sistema impediram uma transformação. Fruto dessa incipiente “revolução” foi o Manifesto Republicano, de 1870. Mas, maior que a força retórica do Manifesto foi a assinatura da abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888. Os senhores de escravos se colocaram frontalmente contra o Império.
Unindo-se à oposição do Exército contra a monarquia, a erosão do sistema não demorou a ocorrer. O “golpe” militar de 15 de novembro de 1889 deu início – cronologicamente – ao período Republicano. Esse evento promoveu avanços significativos, como o sufrágio universal – embora masculino, misógino –, a concretização do estado laico e o presidencialismo.
É neste contexto que a expressão “Ordem e Progresso” surge na Bandeira Brasileira; o amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim. O amor, evidentemente, ficou de fora. Nisso reside a improbidade do separatismo Estatal do regime monárquico. A proposição de uma sociedade justa, organizada federativamente, com maior participação eleitoral de seus indivíduos e liberdade religiosa deveria legar ao Brasil o ideal da construção de uma Pátria Forte, democrática e solidária. No entanto, a utopia não foi estabelecida. A nação permaneceu inamovível em sua configuração estamental, em profunda segregação racial, sem que houvesse quaisquer políticas públicas de inserção social dos mais vulneráveis. O poder trocou de mãos e substituiu a forma, mas a alienação e dominação permaneceram e se perpetuaram.
Um século mais tarde, o Brasil ainda revigora, nos arroubos de retórica, os ideais revolucionários Republicanos. Senão, vejamos o paradigma da pós-verdade – emoção e factoides em detrimento da verdade -, bem como o aparecimento de uma sociedade líquida, segundo reza o sociólogo Zygmunt Bauman. O contrato social que se assina não corresponde ao que se pratica. A práxis política eleitoral/eleitoreira reforça essa tese.
Basta-nos observar a “neoliberalização” do governo de Fernando Affonso Collor de Mello, em 1990, com a implementação da abertura da economia, mas aos galanteios dos frustrados planos Collor, que vitimizaram milhares de brasileiros. Prossigamos com Fernando Henrique Cardoso que, com enorme destreza, estabilizou a moeda e estatelou a inflação, mas permitiu a imperialização da economia pelo capital especulativo estrangeiro. Prova disso foi a venda da Vale do Rio Doce, por R$ 3,3 bilhões de reais, sendo que a empresa possuía cerca de R$ 100 bilhões de reais em ativos. Isso tudo sem levar em consideração a dependência do FMI e sua interferência nas políticas educacionais da década de 90 no Brasil, que promoveram o desmonte da Educação Pública no país.
Lula e Dilma, ou melhor, o “lulopetismo”, embora bem-sucedido no plano social, com a fecunda política de crédito, cooptou as empresas públicas ao bel-prazer do pragmatismo político a fim de se hegemonizar no poder. O desencanto com a esquerda brasileira ascendeu vigorosamente. Foi a época em que o povo se viu andando para trás sociologicamente, na mera dependência de programas que subsidiaram com transferência direta de renda sem contrapartida social.
Temerizando direitos trabalhistas com flexibilizações na legislação, Michel governou com o intuito de manter-se no Planalto. As emendas parlamentares liberadas às vésperas das duas votações do Impeachment deram mostra do toma-lá-dá-cá a olhos nus.
O Messias, compromissado inicialmente com a ruptura do sistema fisiológico que impera nas articulações políticas, cedeu ao “Centrão” – a esperar filiação ao PL – e movimentou a economia com novas emendas do orçamento secreto. Conservador nas pautas comportamentais, conseguiu um nicho eleitoral promissor, mas ortodoxo nas tratativas políticas com o Congresso, entrega um governo aquém do esperado por seu público. Destarte, promove o discurso da emancipação do povo por meio do Auxílio Brasil – Bolsa Família rebatizada – ao modelo lulopetista, perenizando a dependência dos mais vulneráveis ao governo.
Por fim, as eleições de 2022 avançam nos bastidores com a velha expectativa de mudança, porém não falta desconfiança por parte do mercado e do povo, nas ruas, nas casas, nas famílias. A centralização – polarização – Lula-Bolsonaro cria uma fonte inesgotável de vicissitudes em prol do poder pelo poder. Surgem alvíssaras na terceira via: Ciro, Doria ou Leite (dirão as prévias tucanas), ou, quem sabe, Sérgio Moro, mas uma revolução política que ponha Ordem e permita o Progresso parece mais um cenário Ideal que Real.
Não obstante, seria a terceira via uma “terceira via” de fato? Ou teríamos mais do mesmo, com diversificados estratos ideológicos? Talvez, não saibamos. Dependemos do sucesso-insucesso de uma composição inaudita Lula-Alckmin, ou uma arrancada econômica capaz de salvaguardar a reeleição de Bolsonaro.
Aristóteles, em seu clássico “Política”, observou: “Cada Estado é uma comunidade estabelecida com alguma boa finalidade, uma vez que todos sempre agem de modo a obter o que acham bom”. Percebamos que o ideal de bem-estar social vem de muito tempo atrás, porém jamais alcançado por nenhuma revolução, o que inclui a Proclamação da República.
Em sua “República”, Platão afirma, nas palavras do sofista Trasímaco, que entende que a força é um direito, e que a justiça é garantida somente àquele que é o mais forte. Nesta perspectiva, pensemos: Alguma coisa mudou, no respeitante ao que vemos hoje, na sociedade? Se o poder, que deveria emanar do povo, na verdade é um legado hereditário de uma aristocracia “feudal” nas esferas políticas, podemos afirmar que a centralização da governança persiste hegemonicamente, enfraquecendo o equilíbrio e a equidade da participação popular, de modo a aviltar com ferocidade o sistema e dissipar, distanciar qualquer movimento que carregue em si a marca de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, impondo à sociedade brasileira a condição de “RÉ” das veleidades das verdadeiras protagonistas políticas de sempre.
A Proclamação da República é, dentre tantas outras reivindicações de ruptura de poder e revolução política da história brasileira, uma tentativa de imposição de um novo paradigma, mas que resultou em novas velhas ortodoxias – algumas revestidas de progressismo -, mas facilitou a entrada de espectros sedentos por poder, à revelia do anseio do povo.
Quem sabe o que faltou à Bandeira Nacional seja aquilo de que necessita toda a nação, a saber, o “AMOR”. Se o projeto de Lei do ex-deputado do PSOL, Chico Alencar, que promovia a expressão: “Amor, Ordem e Progresso”, na Bandeira Nacional, tivesse sido aprovado, teríamos um ideal mais humanizado a perseguir. Mas, isso permanece no campo das ideias! Enquanto isso, seguimos com “Ordem e Progresso”, com todos os vícios, mas sem as virtudes que dessa frase emanam. Assistamos, então, às comemorações da Proclamação da República com a sensação de que a Ré-Pública permanece incrustada na sociedade brasileira.