Quinta-feira, 26 de Junho de 2025

Coluna Draft: ‘Rock N’ Roll é do diabo!’, por Edgar Talevi

2022-06-01 às 11:10

O Rock N’ Roll é do diabo! Sim, eu cresci escutando isso, mas não dei ouvidos. Continuei ouvindo Rock. De igual modo, ouvia sempre alguns religiosos de meu círculo social falando mal de outras religiões e, não obstante, pessoas falando mal umas das outras. Porém, não me atentei a isso também. E continuei ouvindo Rock.

Cresci em meio a pessoas com muita religiosidade, mas pouca espiritualidade. Talvez, uma espiritualidade não amadurecida, meramente superficial, uma simples autoajuda, no sentido lato. A falta de coragem de enfrentar a vida e suas intempéries leva indivíduos a procurar ajuda em lugares em que a barganha se dá pelo modo mais fácil e, pretensamente, rápido.

Falar em ritmos diferentes do usual em liturgias cúlticas a que me acostumei desde pequeno era heresia de escárnio. Gregório de Matos nem saberia denominar a alcunha disso tudo. Macumba! Fuja! – Quanta besteira! Um instrumento musical sendo vilipendiado por preconceito contra religiões de matrizes africanas. Isso, de certa forma, passava despercebido. Mas hoje não mais! Chegou o tempo em que o trajeto da comunhão com o transcendente se dá pela paz, amor e união. Não existe mais espaço para tolerância para com os intolerantes. Liberdade religiosa é espiritualidade e ponto final!

A Arte, esta bandida, sempre esteve a serviço do “capiroto”, do “lúcifer”, do “chifrudo”, do “demônio”. Tanta ignorância se deve ao obscurantismo do despotismo de líderes acéfalos, mal-informados, mal formados, mal-intencionados, que tergiversam inverdades e vicissitudes em vez de cumprir o mister de ministrar sobre almas angustiadas pelos dias maus que nos sobrevêm.

Ao retalhar pensamentos sobre momentos por que passamos politicamente, religiosamente, socialmente e economicamente, percebo que a ciência, outrora aliada do cristianismo, arcabouço cultural do mundo ocidental, está sendo colapsada por ideologias vis, que versam sobre animosidades comportamentais que em nada representam as Escrituras que sacramentam a fé cristã.

Abraham Kuyper, ex-primeiro Ministro Holandês, autor calvinista, da Igreja Reformada Holandesa, em sua obra “Calvinismo”, explicita a relação ciência-fé, em que cita: “Ciência livre é a fortaleza que nós defendemos contra o ataque de sua tirânica irmã gêmea”. Na luta engajada contra os “normalistas” (homens sem regeneração e consciência moral e ética, segundo o reformador João Calvino) -, citados como irmã gêmea da ciência -,da época, Kuyper afirma ser a Ciência a força que desencadeia a vitória contra os problemas das enfermidades da vida e da alma.

Segundo Kuyper, o Calvinismo foi propulsor da liberdade de pensamento e da erudição cristã, das Universidades e da separação total de Igreja-Estado, promovendo o Estado Laico. Prova disso são as Universidades de Bruxelas, A Católica de Louvain, a de Leige e Ghent, a de Freiburg dentre outras. O pensador, para a fé reformada, é livre à medida que recebe o dom de Deus para sê-lo. Mas, o que se vê nos dias atuais é uma contracultura que irradia contra a própria cultura cristã, causando estranheza pelo fato de negar sua fonte de inspiração e construção basilar dogmática.

Calvino jamais aceitaria outra forma de crença a não ser a inclusiva, tampouco as igrejas advindas do movimento de 1517. Isso corrói o senso crítico de toda a estrutura social que permeia a dogmática cristã e os símbolos de fé das igrejas professantes e confessionais d.C. Mais estranho ainda é o fato observado por Kuyper, em sua supracitada obra, que Calvino, por onde passou, quebrou o poder do Estado dentro do campo da religião e pôs fim ao sacerdotalismo. No entanto, o que se percebe atualmente, são movimentos que mais idolatram líderes que adoram ao Criador, mesmo que à revelia do que se institui nas Sagradas Escrituras.

Entrementes, voltemos à Arte. Para Calvino “A arte é como um dos mais ricos dons de Deus para a humanidade”. Nesta perspectiva, não se admira o desejo do reformador de que ao lado de cada igreja houvesse uma escola. Isso é vanguarda de ciência e fé, em síntese integradora de fortalecimento contra o Apocalipse a que estamos acometidos pelo senso comum do preconceito e do sectarismo.

Nas palavras do próprio Calvino, segundo André Biéler, em sua grande obra: “O Pensamento Econômico e Social de Calvino”: “Mais adequadamente falaram os poetas, reconhecendo que tudo quanto é sugerido de natureza provém de Deus, que todas as artes dele procedem e que devem elas ser tidas como invenções suas”.

C. S. Lewis, Mestre apologeta cristão, um dos maiores pensadores de todos os tempos, em: “A Abolição do Homem”, ensina: “O Homem deu um golpe fatal na Natureza”. Isso nos inspira a procurar fontes inesgotáveis de conhecimento e uso de notáveis saberes no cotidiano, a partir da Educação, das Artes, da Música como tal e afins.

Lewis ainda segue: “Isso modifica o quadro que, às vezes, é pintado de uma emancipação progressiva da tradição e um controle progressivo dos processos naturais, resultando em um aumento contínuo do poder humano”.

Para o autor, a humanidade carrega legados que corroboram na construção de conhecimentos e outorgam a outras gerações ideais que, realizados ou não, modificam o cenário do cosmos. A arte é, portanto, instituto de ruptura, contracultura, progresso, encantamento, proponente de processos civilizatórios e agendas de novos constructos sociais.

Resta provado até aqui que o Rock N’ Roll foi a bola da vez pelas circunstâncias de atrito entre uma cultura segregária, preconceituosa e politicamente “estável” – pejorativamente falando -, pois democracia é instabilidade, não institucional, mas de liberdade de pautas, agendas e pensamentos. O Rock implementou o “eles contra nós” de sua geração e permanece até hoje em conflito com entes mais aflitos com suas indagações e dúvidas interiores que com o progresso do ser humano em construção.

Para voltar à minha infância… virei muitos discos de trás para frente, na expectativa de encontrar mensagens diabólicas, mas o que achei foram arroubos de retóricas de galanteios de “Promoters” da fé. Hoje, amadurecido, não caio mais nas ciladas do preconceito a que fui submetido. Rock não é do diabo. Sertanejo não é do Satanás. Samba também não faz parte de obra maligna. Pessoas que falam mal das outras é que são. Se não, vejamos o que a Bíblia Sagrada diz:

Provérbios 6:16: “Seis coisas o Senhor aborrece, e a sétima a sua alma abomina: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que trama projetos iníquos, pés que se apressam a correr para o mal, testemunha falsa que profere mentiras e O QUE SEMEIA CONTENDAS ENTRE IRMÃOS”

Enquanto escrevo isso, haverá quem ainda pense que lugar de Rock é fora de um círculo sagrado. Mas, afinal, o humano é sagrado? Caso contrário, não haveria problema algum em ouvir Rolling Stones, pois humanos são os que ouvem e os que criticam.

Ah… ainda há os que insistem em chamar a Jesus de “você”, na terceira pessoa, exigindo uma exegese estapafúrdia, pois nem na Septuaginta se encontra tal disparate. Os textos canônicos, no original, ao testemunhar o respeito ao Messias, tinham-no na segunda pessoa. Entretanto, isso passa… desde que não seja Rock N’ Roll!

Coluna Draft

por Edgar Talevi

Edgar Talevi de Oliveira é licenciado em Letras pela UEPG. Pós-graduado em Linguística, Neuropedagogia e Educação Especial. Bacharel e Mestre em Teologia. Atualmente Professor do Quadro Próprio do Magistério da Rede Pública do Paraná, na disciplina de Língua Portuguesa. Começou carreira como docente em Produção de texto e Gramática, em 2005, em diversos cursos pré-vestibulares da região, bem como possui experiência em docência no Ensino Superior em instituições privadas de Ensino de Ponta Grossa. É revisor de textos e autor do livro “Domine a Língua – o novo acordo ortográfico de um jeito simples”, em parceria com o professor Pablo Alex Laroca Gomes. Também autor do livro "Sintaxe à Vontade: crônicas sobre a Língua Portuguesa". Membro da Academia Ponta-grossense de Letras e Artes. Ao longo de sua carreira no magistério, coordenou inúmeros projetos pedagógicos, tais como Júri Simulado, Semana Literária dentre outros. Como articulista, teve seus textos publicados em jornais impressos e eletrônicos, sempre com posicionamentos relevantes e de caráter democrático, prezando pela ética, pluralidade de ideias e valores republicanos.