O cenário apocalíptico por que passa o mundo, em meio a uma pandemia sem precedentes, no respeitante à globalização de seu alcance, propiciou a proliferação de equivocidades e meias verdades que engrossam a fila das veleidades, simples obstinações em favor da garantia de posições sociais e políticas que fazem emergir atores que arrogam a si a pretensão de controladores da opinião pública.
Neste contexto, encontram-se sujeitos políticos, clérigos eclesiásticos, formadores de opinião, manipuladores de redes sociais dentre tantos outros senhores da razão e da verdade. A esse respeito é essencial interpretar o fenômeno da disputa retórica para salvaguardar o método científico que, acima de tudo, preza pela objetividade e ateísmo metodológico.
Em uma viagem pela origem do termo Lúcifer e sua história, o vocábulo é encontrado no livro do profeta Isaías, 14:12, correspondendo, segundo alguns comentaristas bíblicos, ao Rei Nabucodonosor, da Babilônia, chamado de “Estrela da Manhã”.
Em hebraico, o termo Lúcifer é traduzido para heylel bem shachar, tratando-se de “brilhante, filho da manhã”. No texto grego – Septuaginta (tradução do Antigo Testamento ao grego), aparece como eósphoros, que significa “porta-luz – No latim, em específico na tradução conhecida como Vulgata Latina, o termo aparece 5 vezes, equivalendo a “porta-luz”. Percebemos, portanto, que não se trata de nome próprio, como querem alguns.
Mas, afinal, de onde surgiu a teoria de que Lúcifer tornou-se o “diabo” – adversário – em tradução livre? A tradição tem origem em Jerônimo, ao traduzir a vulgata, no século 4 d.c. Segundo o autor, Lúcifer seria um anjo da Ordem dos Querubim – o plural adequado para o nome Querubim é tal como está, no singular, pois, em hebraico, a terminação “IM” equivale ao plural – descrito como de beleza impressionante e de relação muito próxima a Deus.
O anjo de luz, segundo a tradição, pelo estado de beleza e características majestosas, em uma volúpia de orgulho e soberba, desejou ser igual ao seu Criador – Deus – , causando rebelião nos lugares celestiais, tornando-se anjo caído, carregando consigo a terça parte dos demais anjos.
Destarte, em que a narrativa de um anjo caído teria relação com os protagonistas de uma sociedade moderna, em pleno século XXI? A resposta está na movimentação da história da civilização, por meio do paradigma da pós-verdade, neologismo que descreve o modelamento da opinião pública que apela às emoções, das disputas retóricas, das falsificações da verdade, dando a esta uma importância secundária. Resume-se, deste modo, à mentira, fraude, revelando conexão intrínseca com a concepção de que algo que aparente ser verdade é mais importante que a própria verdade. Tudo isso encoberto pelo discurso do politicamente correto.
Uma obra sui generis, homônima ao título deste artigo, foi escrita pelo ex-ministro presbiteriano, um dos maiores intelectuais da igreja cristã brasileira, psicanalista e autor de dezenas de livros, Caio Fábio D’Araújo Filho. A Síndrome de Lúcifer, segundo o supracitado autor, é o orgulho, a soberba, o desejo de ser maior que o outro, em um impulso contumaz de superioridade, vaidade, vanglória, arrogância, prepotência e presunção.
Sobre isso, o ex-professor de Cambridge, pensador e apologeta cristão, Clive Staples Lewis, em sua obra “Cristianismo puro e simples”, o autor assim resume o orgulho: “O orgulho não tem prazer em ter algo, mas apenas em ter mais do que o próximo”. Ainda segundo Lewis, o orgulho é essencialmente competitivo.
Santo Agostinho, sumidade teológica do século IV, em suas “Confissões”, no livro décimo, capítulo XXXVIII, resume a vanglória: “Muitas vezes, por um cúmulo de vaidade, há quem se glorie até mesmo desse desprezo da vanglória”. Compõe o arcabouço do pensamento cristão a luta contra o sentimento de vaidade, soberba e orgulho. Na contramão desse pensamento, muitos líderes se manifestam politicamente, à revelia de decisões intracorporis das instituições, no anseio de saciar a alma com galanteios e benesses que acariciem o ego e o desejo de poder.
Nesta perspectiva, encontram-se líderes religiosos afamados, televisivos, adeptos da Teologia da Prosperidade, com arroubos totalitários, conquistando prosélitos à custa da venda de modernas indulgências, manifestando uma miopia teológico-histórica da igreja ao longo de 2 milênios.
Em um breve olhar para a história da igreja, podemos observar as contradições e discrepâncias entre a simbiose do poder público e eclesiástico. Isso se evidencia no processo de oficialização de igreja-estado, por intermédio do imperador Teodósio, em 380 d.c. A partir de então, foi necessária uma constante luta pela separação das partes para que, finalmente, houvesse enfrentamento das desigualdades e injustiças por parte do Estado. Mais tarde, isso culminou na Reforma Protestante, em 1517. Parece que, em tempos hodiernos, toda essa revolução estrutural do pensamento cristão foi abandonada em prol de um crescente movimento de idolatria à personalidade de afortunados que almejam o poder e o dinheiro.
No mundo político, não é diferente. Disputas por cargos, barganhas por emendas parlamentares em troca de votos, alianças espúrias com o intuito de hegemonização de poder não escapam à pós-verdade. As propagandas eleitorais, em época de eleição, exemplificam com êxito a propagação de equivocidades para atrair adeptos que elevem ao patamar de Messias os pretensos salvadores da Pátria. Sem questionamento, muitos reverberam teorias e discursos vazios, que promovem a desinformação e as fake news.
Sob a insígnia da vaidade, achata-se a verdade e o propósito da vida. O orgulho e a soberba, verdadeiramente, são o meio pelo qual se manifesta o egocentrismo, as disputas de poder pelo poder, o culto à personalidade, as dissensões, as porfias, a dissolução de interesse público-coletivo em favor de projetos pessoais.
A Síndrome de Lúcifer, entretanto, não é prerrogativa apenas de sistemas políticos. Ela está presente nas famílias, pela adoção do machismo, da misoginia, da falta de diálogo entre os cônjuges, motivos pelos quais casamentos são dissolvidos. Por sua vez, a carência de se interpretar os filhos, em suas necessidades emocionais, leva ao surgimento de transtornos mentais que, se não resolvidos, causam dependência de tecnologias, álcool e drogas. Nas relações de trabalho – empregador-empregado – a vaidade, o ego, o orgulho e a soberba estremecem o ambiente, em disputas pessoais patológicas, capazes de contaminar o ambiente e prejudicar o bem-estar da empresa.
Propendamos à análise das palavras das Escrituras Sagradas que servem de acume aos nossos egos inflados pelo mundo e suas vaidades: “Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tiago 4:6 – ARA)