Segunda-feira, 16 de Setembro de 2024

Coluna Lettera: ‘A folha caída plantou o recomeço’, por Francielly da Rosa

2024-09-04 às 16:04
Foto: Pixabay

A folha caída plantou o recomeço porque lembrou o ciclo. Indo e vindo, levadas pelas curvas do vento da próxima estação, assim estamos todos nós. Neste outono, assoberbada pelo trabalho incessante, faltou-me ainda algum burilamento de mim mesma na atenção às coisas pequenas que a vida vai rasgando diante dos olhos.

Dia desses, enquanto caminhava, vendo as árvores despidas, fiquei a pensar um tanto sem graça: “Que é que tenho feito de um punhado de dias a mim confiados?” Sequer lembro da rotina dos dias anteriores. Fogem-me dos entremeios da memória qualquer coisa que não as coisas grandes e de adultos que tenho feito. Fui lembrar-me de atentar para o caminhar do processo quando o menino me olhou com um par de olhos negros e cheios de vida e disse que iria catar latinhas para ajudar a mãe em casa. De repente, uma tristeza me mordeu, pegando-me desprevenida. É apenas um menino. Depois, a consciência acrescentou: “Ele é mais um menino entre tantos outros meninos!” A tristeza, então, duplicou-se.

Cada passo que dou agora não carrega senão a soma de uma impressão tão forte que me arrastou nos olhos um turbilhão de lágrimas que eu soube, por força da vida adulta, muito bem reprimir.

Há histórias sendo escritas todos os dias; algumas se escrevem no conforto da casa, do carro, das escolas caras… outras, por sua vez, vão se escrevendo com o dedo no chão de terra vermelha, no chinelo gasto de pés negros, num saco nas costas, num par de olhos negros que passa a buscar no chão da rua e do lixo algo a mais.

Buscamos sempre algo a mais… Para muitos de nós, o “algo a mais” é um carro melhor, uma casa mais espaçosa, um emprego com grandes ganhos, um tênis novo, mais, mais, mais… E a vida vai girando em torno do que se quer. Mas e lá? Que é feito de lá? Lá, onde o que se quer não se tem, e o que se precisa não se acha.

Cada passo nessa estrada de outono, de folhas caídas, vai pesando. Vai pesando a folha que cai como se junto a ela algo mais em nós pendesse para o cair, um cair leve e lento, como caem as folhas das árvores que os olhos apreciam. As árvores seguem nuas, mas nós não… Porque nos mascaramos diante do que possuímos, mas estamos verdadeiramente nus por dentro, pois o peito não é senão o lar de coisas que plantamos dia a dia em atitude e palavra.

Lembrei-me ainda de fato ocorrido num outro dia desses de outono, de folhas no chão, das mãos da menina risonha de expressivos olhos verdes, que trazia um galho de roseira para presentear-me. Ah, sim! Lembro-me e sorrio agora, enquanto absorvo a cor dos ipês-amarelos que cerceiam a caminhada… Percebo agora, enquanto me coloco diante da árvore, observando seus galhos torneados, como se o entrelaçamento deles me enroscasse também a alma, erguendo-me ao topo, sacudindo-me, fazendo de mim também parte de sua composição, para depois perguntar: “Que tens feito tu das folhas dos teus dias?” E eu, envergonhada, nada respondo.

Lá, nesse lugar onde moram todos eles, há coisas que nós não temos. Lá, eles conhecem verdadeiramente o valor das coisas, não pelo preço de etiqueta, mas pelo valor que o coração atribui. E não há alma mais rica e mais nobre do que aquela que escreve com os dedos sujos na terra poeirenta os seus dias dourados, enquanto do outro lado, a mão aparentemente limpa deixa transparecer o negrume de uma alma cheia de valores vazios.

Lá, o amor sabe amar… E sabem todos o preço da falta, o custo por trás do que não se tem e o real valor de tudo que possuem. Não são filhos de etiquetas, não são filhos de marcas, nem filhos de prédios… são, porém, reais filhos da vida!

E quando chegar a estação florida, as árvores, agora revestidas e adornadas de deslumbrante brilho, coloração e aroma, hão de presentear os olhos deles, reverberando a chama da esperança, do presente que é o viver, do chão de terra solta, dos pés e mãos cheios de barro que souberam plantar a semente. Do outro lado, nós, abrigados no teto desesperado de nossos afazeres, esqueceremos de perceber na folha que cai a estação que se aproxima; esqueceremos de igual modo de ter plantado nossas sementes, e ficaremos olhando a árvore dos outros, enquanto a nossa semente dorme nas mãos. Nós, aqui do outro lado, vamos descobrir, cedo ou tarde, que o valor das coisas que temos não paga a migalha do chão de terra que lhes é abrigo. Eles são grandes, sim! E nós…

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.