Sábado, 16 de Novembro de 2024

Coluna Lettera: ‘Carta de despedida’, por Francielly da Rosa

2024-05-13 às 10:30
Foto: Freepik/Reprodução

Nós sempre achamos que o fim é algo longe, um momento distante que não nos alcança. Errado! O fim está mais perto de nós do que podemos imaginar! O fim nos alcança no abraço da noite que suprime o dia, na hora que esgota o tempo e no badalar dos sinos da igreja que marcam ponto a ponto um fim. Acabam-se os dias, as horas, os ciclos, os relacionamentos, e pouco a pouco vamos nos despedindo do tempo e de nós.

Sempre achei que as despedidas são duras, mas algumas enfrentei de modo a me surpreender. Entre o prazer do novo e o desprazer da angústia que tumultua o peito. Assim, todos os dias, por pelo menos um ano, fui me despedindo, até que a despedida completa surgisse como uma alavanca para um futuro incerto e inesperado. Foi a despedida de mim que surgiu primeiro. Uma despedida que vi ocorrer uma porção de outras vezes ao longo desse curto tempo, que para mim, para ser sincera, parece demasiadamente longo e enfadonho. Despedi-me de uma carcaça velha e de alguns sonhos ingênuos, estes ficarão para sempre enterrados nos escombros de um passado que não volta, pois, surgiram novos e robustos sonhos, sonhos melhorados e enriquecidos pela terra fértil dos novos propósitos e dos novos vínculos.

Despedir-me de mim nunca foi tarefa fácil, mas hoje é coisa prazenteira que faço com o maior gosto! Dou adeus ao que foi com o peito cheio de gratidão e com o coração tão leve que posso carregá-lo sem angústia!!! Estou feliz de mim e do que foi. Tudo não poderia ter sido diferente,porque foram estes tropeços que no caminhar pensei serem amargura que fizeram esse caminho bonito que eu traço hoje com os olhos cheios de brilho.

Tantas coisas ainda podem acontecer, mas com certeza muitas já aconteceram e eu fico feliz! Feliz do erro, do acerto, do passado, do presente e do futuro que é uma eterna consequência do meu viver de agora. Esta é uma carta de despedida para aquela que o passado guarda em uma caixinha de assombros e de escombros que são as ruínas do que já não era. Ela está lá, como um corpo guardado num túmulo de veludo, que o tempo corrói, corrói, mas não se extingue. Algumas marcas ainda trago comigo, são cicatrizes que o tempo não apaga, mas que mostram com maior ou menor clareza para mim e para todos os outros que as veem que consegui… talvez não do melhor jeito, mas do MEU jeito! Consegui.

Tantas vezes desistir surgiu como uma possibilidade tão próxima, e, ainda que aos arrastos, consegui. Falar de sofrimento é sempre coisa estranha, porque para cada qual de nós há experiências e o sofrer é único.Para mim aqueles momentos foram sofrimento, mas talvez para outros, não. Não quero aqui competir as minhas dores com as de ninguém, quero apenas olhar para elas com a certeza de que estes olhos que hoje as veem compreendem essa travessia tão nossa e tão dura. A travessia mais dura foi a de dentro e esta me doeu por inteiro e eu senti em cada fibra, porque sou assim. Estou feita de fibras que sentem a dor de mim e a dos outros, ainda que assim eu não queira. Sinto. Mas nós atravessamos.

No princípio, o rio era turbulento, depois, aprendi a nadar. Desde que arredei os pés da areia da praia descobri que a vida em alto mar tem os seus prazeres. Há tempos não sei mais o que era aquela tristeza avessa que percorria os poros desse corpo e caminhava de fora para dentro e de dentro para fora. Se por ventura o meu dia não está bem ou alegre, é apenas uma tristeza miúda que me agarra. Não sinto mais as garras daquele tempo que a dor me devorava com fome e eu sofria um sofrimento que nem entendia muito bem onde começava e onde terminava. Há tempos já não choro com aqueles soluços que ecoam no poço sem fundo da alma doente. Se hoje o pranto cair vai ser tão brando como as chuvas de verão.

Sento diante do reflexo no espelho. Mudei. Mudei muito. Estou cansada, mas estou feliz! E acima de tudo estou grata. Grata pelo que foi, pelo sofrer que era tempestade para a vinda do arco-íris.
Estou grata, sim!

A memória do menino morto manchando a toalha branca de sangue no quarto de hospital já não me dói como antes, agora, olho para ela com pena, uma tristeza singular, uma dor que abraça, porém já não dói. Ela fere porque é saudade, mas não fere como antes, como aquele ferir que queria me roubar a vida junto. A memória do menino ganhou contornos de sorriso, e quem sabe um dia ganhe contornos de reencontro!

Esta carta é uma despedida que é oração para todos os dias. Que a gente sempre se lembre de se despedir do que foi, para receber o que virá, e que o que venha seja sempre raio de luz que dissipe a tempestade, amor que solidifique as rachaduras do peito e uma alegria mansa de viver a despedida de cada dia e de si, aceitando o que se pode fazer em cada momento e consciente de que cada dia ainda é possível fazer algo novo de novo e de novo até que o nosso ciclo aqui finalmente se finde.
Estou feliz. Uma felicidade pacata e simples. Estou feliz como estava naquela noite em que uma estrela cadente cruzou o céu e dentre todos os pedidos eu pedi apenas por felicidade, ainda que soubesse no âmago do peito a efemeridade de cada momento, pedi apenas que a felicidade fosse rotina, como a felicidade que experimentara naquele momento, conversando na penumbra de uma noite de domingo com um completo desconhecido… um desconhecido que viria a se tornar o meu ponto de encontro com Deus e comigo mesma, um feixe de luz na escuridão que me lembraria a cada simples momento que a vida é para ser vivida, não sofrida.

Feliz. Feliz desses olhos que contemplam o findar dos dias cheios de esperanças pelo novo dia que virá e cheios de graça pelas oportunidades concedidas. Que o tempo é bem mais precioso e o que fazemos com ele é o que fazemos com a vida. Hoje me despeço do que foi, aceito o que virá, que a roda gire, que o bem vença e que o amor nos preencha. Tudo foi por uma razão e tudo virá a ser por outra razão ainda maior, e que sejam entre coisas boas e ruins, momentos de aprendizado e de esperança… Porque a chuva sempre passa e o sol sempre surge, não importa quantos dias dure a tempestade!

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.