Cuia de chimarrão
O líquido amargo e quente chegou à boca. Apertava os dentes, segurava a lágrima que insistia em verter dos olhos, a ponta da língua queimada. Fruto da insistência de criança e sua sede em descortinar os novos sabores da vida. O chimarrão quente que acabara de trazer à boca, não lhe seria um dos sabores mais agradáveis que experimentou, mas era uma espécie de metáfora para o momento que compartilhara com a família.
Todos à volta da mesa, rindo, compartilhando palavras, memórias sobre o passado.
“Você lembra de quando nois ia no campo lá de cima pra virá mortal?”
“Lembro!”
“E aquela vez que o João caiu, foi querê se aparecê virá mortal e caiu de cara…”
Todos riam, entre as lembranças que se apresentavam em roda, em riso, em verso. E a criança espiava, ria, imaginava toda a cena repetindo-se mentalmente mais uma vez, perdia-se em riso novamente. A cuia ia passando em círculo, acompanhando a conversa, rindo, dançando e deslizando sobre a mesa. Os olhos de criança dançavam, acompanhavam.
Na segunda volta, a pergunta retornou:
“Quer mais um gole?” Queria. Não gostou do gole amargo e quente que lhe queimara a língua da primeira vez, porém queria estar na posição de possuir a cuia em mãos, de ser parte do círculo, ainda que não tivesse histórias de um passado longínquo para trazer à memória.
Cada movimento era estudado cuidadosamente por aqueles olhos vivos, aqueles ouvidos atentos. Assistia um dos tios levantar da cadeira, olhar profundamente para algum lugar entre o passado e presente. Levava então a mão até o bolso da calça jeans, retirava um maço de cigarros, tomava um entre os dedos, segurava-o entre os lábios. Com os olhos semicerrados, sacava o isqueiro e tentava uma, duas, três vezes acendê-lo, na terceira o fogo surgia, então aproximava o cigarro e tragava vagarosamente. Sempre o mesmo ritual litúrgico. A criança acompanhava tudo aquilo. Sorria.
Os anos trazem o silêncio, apagam as histórias e silenciam as memórias que fluem sempre ao som da viola. O círculo aos poucos diminui, definha. O chimarrão esfria, logo nem existe, é só memória guardava na cuia escondida no fundo do armário. O tempo escoa, amargo e quente, traz água aos olhos, como aquele gole que quando criança trouxe à boca num puxão que lhe queimara a língua.
“Lembra de quando a gente …”
“Foi virar mortal e o João caiu de cara no chão…” – a criança, já crescida, já sabia da história, mas silenciou, ouviu mais uma vez. As risadas surgiram em seguida, baixas, lânguidas, rasas. O círculo agora já não era mais um círculo, eram apenas cadeiras dispersas, memórias vagas, era ausência. A cuia de chimarrão dessa vez não surgiu. Ah! O tempo! Era ele quem passava agora, quente, dolorido, era ele quem queimava a língua e trazia lágrimas aos olhos de todos. O tempo agora tornou-se cuia de chimarrão.