Sábado, 16 de Novembro de 2024

Coluna Lettera: ‘História de vô’, por Francielly da Rosa

2023-06-14 às 10:07
Foto: Freepik/Reprodução

História de vô

Florescem os jasmins e jacintos no vasto campo perene. A luz que o sol irradia se espalha, envolvendo em fina camada de ouro todas essas ramagens traiçoeiras que vão se alargando pouco a pouco pela paisagem. Todas essas pequenezas não passam despercebidas aos olhos curiosos do estranho viajante. Este, quando não percorria estas lonjuras, costumava se afogar em sonhos vívidos de sua mente analítica, adentrando as brenhas e brejos que muitas vezes são impossíveis de serem exploradas por seus próprios pés.

Vez ou outra, abrindo caminho entre heras e arvoredos, ele as cortava com um longo facão em punho, para depois se deparar com uma ribanceira ou laguinho onde um ou outro bichinho repousava. A ânsia em explorar o consumia, tal qual fogo se alastrando em capim seco. Então, ele disparava entre as matarias para vivenciar suas ambições juvenis.

Não havia coisinha por menor que fosse que não lhe chamasse a atenção. Os arvoredos alcançavam-lhe a cabeça e, às vezes, um galho roçava na aba de seu chapéu, revelando uma cabeleira negra, macia, fina e sedosa. Em seguida, ele rapidamente a escondia, abrigando-a novamente no antigo chapéu de copa dentada.

Trazia nas costas uma mochilinha típica de aventureiro, mas nada havia nela que fosse verdadeiramente útil: uma linha e anzol, que talvez lhe trouxessem algum peixe como alimento, porém, ele não sabia pescar. Um recipiente ínfimo que mal saciaria a sede de um pardal. Uma faca quase cega que pouco lhe servia e um par de alpargatas apertadas que o incomodava. Mesmo assim, trazia no rosto a expressão de vitória, como se fosse o descobridor de um novo mundo. Mas todos sabiam que era bom embromador, contando causos que jamais viveu de fato. 

Os anos coroavam as aventuras e desventuras de sua vida, e, tão logo, percebeu que contava suas histórias para os filhos, e estes as repassavam aos netos. Hoje, esta figura misteriosa adormece no passado de minha família. Quem era ele? Quem sou eu? Talvez, no final, sejamos apenas histórias sem rosto contadas por aí. 

Lembro-me  de ser ainda criança, e, quase sempre, as narrativas iniciavam com um longo suspiro e um olhar que se perdia nas linhas sinuosas de um horizonte colorido. Só aqueles olhos ainda conseguiam discernir os contornos do relevo de uma composição nativa, primitiva, composições agora perdidas diante dos avanços da urbanidade.

 “- No meu tempo, isso aqui era tudo mato!”

Ao ouvirem tais palavras, os olhos das crianças faiscavam e elas se acomodavam rapidamente, ansiosas por mais.

“- O vô, meu avô, bisavô de vocês, andava muito a cavalo, era dono de terras, e, numa saída à campanha, viu a vó… pegou a vó no laço… ela era índia, muito bonita, cabelos negros e pele cor de jambo… O vô sempre foi bem-apessoado…”

As crianças sorriam, imaginando, entre a surpresa e o espanto, como seria aquele bisavô aventureiro que não conheceram. Entre tantas proezas, elas não sabiam distinguir o que era sonho e o que era realidade, mas acreditavam e recriavam o biso em suas mentes. 

“Será que ele era bonito? Usava chapéu e tinha um bigodão…” – pensava a neta.

“Iiii, bigode e barba eu já não gosto, porque pinica a cara da gente quando a pessoa abraça!” – respondia a outra criança, resoluta. E as duas riam juntas.

Em seguida, queriam saber mais, ansiavam por ouvir a história repetida, absorver cada novo detalhe, relembrar da vez em que o avô pegou a avó no laço, do lobisomem que “deu um corridão” no avô, da pequena pedra de diamante que a avó encontrou ao lavar roupas no rio e depois devolveu à água. O avô sorria, olhava serenamente para as crianças, suspirava e buscava uma xícara de café. Depois, voltava com os olhos marejados de saudade e lembranças de um tempo que não pode ser revivido.

“- Então, puxa cá o teu banquinho que eu vou te contar uma anedota, dos tempos que isso aqui era tudo mato!”  

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.