Janela da tarde
Há sempre uma janela da tarde que se abre às cinco e quarenta na minha parede. Quando o sol que já vai se deitando e estende uns raios e eles recortam o retângulo da janela, numa projeção que se alonga até a parede cinza onde a frase do livro “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, está escrita. No primeiro quadro caloroso, bordado em tons de amarelo, e ladeado em tons de alaranjado, iluminam-se as palavras: “Já que…”. O sol insiste em transpassar o outro retângulo da janela, mais opaco e escurecido pelo insulfilm, projetando um recorte da continuação da frase: “…sou, o jeito é ser.”
O quarto vai ficando numa penumbra e a janela da tarde é a única luz que vejo quando estendo os olhos até a parede manchada de tinta, de pinceladas errôneas e a caligrafia da frase que escrevi numa letra que depois não gostei. Suspiro e releio: “Já que sou, o jeito é ser.” Vejo a marcação da autoria escrita no canto esquerdo em letras miúdas, numa linha imaginária que vai subindo a serra. Torta como eu. Agora já não posso apagar, pois é trabalhoso. Tampouco posso apagar a janela da tarde que todos os dias se manifesta como um convite para que eu volte os olhos para além das paredes do quarto e vá descobrir lá fora que há uma vida para além da minha.
O tempo me devora. Devora também a janela da tarde que vai se apagando, e os tons, cada vez mais alaranjados, vão sumindo vagarosamente da parede cinza. A janela aberta traz uma brisa fria que me envolve os pés, e o quarto todo vai ficando gelado. Sinto saudades da janela da tarde. Corro, num último ímpeto, como se pudesse resgatá-la, voo até a janela como se pudesse prender nos dedos o último raio de sol. O muro limita minha visão. Subo na janela. O sol deixa rastros avermelhados num horizonte que não alcanço. Só vejo o telhado das casas, e as casinhas vão se distribuindo ao longe, para depois se perderem em uns campos verdes desbotados, entrecortados por fileiras de árvores que serpenteiam as colinas mais ou menos íngremes.
Só os telhados… é sempre eles que vejo, ainda que fique na ponta dos pés, como uma bailarina equilibrando-se numa corda bamba, só me restam os telhados, nunca os mistérios que povoam o interior de cada casa, e essa vida secreta que urge como uma necessidade, como um segredo que precisa ser descoberto para deixar de sê-lo. Só quando penso nisso entendo o costume desta vizinhança de esticar os degraus e as dobras do pescoço para descobrir o que se passa detrás do portão preto da minha casa, do movimento de carros e pessoas que às vezes chegam, da nossa rotina tediosa que lhes é um deleite e um prazer assistir.
Todo telhado, portão e paredes ocultam um segredo, é o que a janela da tarde me convida a descobrir. O relógio me diz que já são seis horas, a janela da tarde se fechou para mim já tem alguns minutos. Acendo a luz, fujo da penumbra do quarto. A frase continua lá escrita na parede, porém agora já não me interesso por ela.
Ando em memórias, perdida por entre as viagens que fiz, nos sorrisos que vi e que por algum motivo me capturaram, na roda de conversa em que a família se reuniu e eu me senti agraciada, como nos tempos antigos em que, sentados à mesa, não havia ausência. Descubro que são eles que me povoam, que escrevem a minha história, e é por isso que às vezes me sinto só, e que aceito a solidão como um convite, como um refúgio às lembranças amargas daquilo que o tempo já me levou.
Talvez, eu não goste tanto assim da minha solidão, e é por isso que a janela da tarde se abre todos os dias e me chama, iluminando as letras na parede: “Já!” Quando a janela da tarde se apaga da minha parede, me consome a lembrança daquilo que importa e que eu já havia esquecido que era de fato importante, pois sou convidada a sair para fora de mim. A janela da tarde me convida a ver a vida que me cerca e que eu ignoro, e a suportar os infortúnios do barulho do vizinho, do xingamento da vizinha e a sorrir para todos eles, porque no fundo somos nós todos iguais, igualmente buscando a luz da janela da tarde, esbarrando as nossas imperfeições e nos indagando se no fundo não somos mais próximos daqueles que julgamos do que dos que nos são favoritos.
O céu pintou-se de vermelho e agora vai morrendo em tons de rosa até o opaco de um roxo esmaecido que nos obriga a levar os olhos para cima e perceber que tudo é tão grande e nós somos insignificantemente pequenos. Vou escapar da imensidão no refúgio de minha casa. Vou olhar para o menino e perceber que talvez não seja para ele o que poderia ser, vou olhar para o vizinho e me questionar sobre os nossos silêncios e os nossos barulhos, vou olhar para o espelho e encarar a face pálida que se reflete, os cabelos despenteados, a roupa larga e preta, e pensar sobre todo esse conjunto que agora se compõem refletido à meia luz do quarto. Vou me obrigar a encarar a vida.
“Já que sou, o jeito é ser!” Aceito que a frase me toque como me tocaria o conselho de um velho sábio. Vou olhar para a parede cinza entre pinceladas e rabiscos do passado, e esperar que a luz enquadre mais uma vez a parede como uma moldura e descobrir que são mais uma vez cinco e quarenta da tarde. Espero ansiosa por isso… Afinal… Quem é que sabe os convites e os segredos que a janela da tarde de amanhã me trará!