Quinta-feira, 25 de Abril de 2024

Coluna Lettera: ‘O segredo’, por Francielly da Rosa

2021-10-17 às 08:39

O Segredo

De tudo que vivemos restam, aqui, num baú empoeirado, trancado no sótão das memórias, o agradável cheiro de seu perfume que me extasiava. E eu, tal qual criança que acabara de nascer, descobria o brilho da vida, o sentimento, o clímax de viver esse amor secreto, sob os olhos de todos, mas que apenas nós dois sabíamos.

Sempre gostei de amores intensos, à moda antiga; aprecio o toque, o perfume, os detalhes e, principalmente, as palavras. Suas palavras, para mim, doces canções, embalaram-me nas noites a fio até o amanhecer. Mesmo com os olhos cansados, gastos, marcados a cada dia por números que cresciam e engrossavam as lentes dos óculos, permaneci insistente, sem saber ao certo o caminho a seguir, sem querer pensar no final ou no que faria depois que tudo acabasse.

Seu nome tornou-se vaga lembrança, mas os momentos foram marcantes. Como num barco a vapor, embarquei em tuas letras, tão intensamente, que nos fundimos e nos  tornamos uma só coisa. Apenas nos permitimos viver cada momento como se fosse o último, sem saber ao certo quando tudo chegaria ao fim. Eu o escolhi ou, talvez, ele me escolheu.

Lembro-me de cada passo naquele chão de madeira. Ninguém compreendia a importância das escolhas além das aparências, ou, talvez, eu fosse a única que pensava de forma diferente. Algumas amigas preferiram os robustos, os bonitos, atraentes, já eu era muito mais seletiva, observadora, atraída pelo conteúdo, pelo mistério e pela intensidade.

Não demorou muito para que nossa relação se intensificasse e, então, os amantes foram descobertos. Nosso segredo revelado em frente aos meus amigos e colegas de classe. Não era o momento oportuno para mantermos diálogo, mas ali estávamos. Ele sempre me arrancava sorrisos bobos em cada página, envolvia-me em suas palavras, até mesmo em horas inoportunas, como naquele momento, quando que fui interpelada pelo professor de filosofia.

Todos, agora, voltavam seus olhares para nós e para as rígidas palavras proferidas pelo professor que, insistente e pausadamente, pedia-me que guardasse o celular. Eu, que acabara de sair do êxtase de ser descoberta,  não entendia o que ouvia e, por impulso, escondi-o debaixo da mesa.

Paralisada no tempo, sentia as  palavras perderem-se enquanto os passos do mestre se aproximavam, até  que eu, timidamente, retirei-o debaixo da mesa. Para surpresa do professor, e de todos, não possuía celular, mas tinha em mãos meu eterno amor: um livro.

Naquele momento, sob o sorriso do educador, tal qual um padre realiza a cerimônia de casamento, tivemos nosso amor abençoado e permitido, mas nada mais era como antes, pois, agora todos sabiam sobre nós. Senti-me envergonhada, exposta, pois no mundo em que vivemos, ninguém costuma ler. Era eu a garota estranha que carregava um livro para todo canto que ia. Vi-me, então, como a menina do conto de Clarice Lispector: “não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.”

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.