Sexta-feira, 26 de Abril de 2024

Coluna Lettera: ‘O sol que habita em mim’, por Francielly da Rosa

2021-10-03 às 11:12

O sol que habita em mim

O perfume de setembro vem inebriar os sentidos e desabrochar em flores, que, ao findar dos dias, veneram a chegada de outubro. Assim suscita a vida, recuperando-se de traumas gerados no enfrentamento da pandemia mundial, numa época de distanciamento, que suplica pela aproximação benevolente dos corações.

Caminho pelas ruas e deparo com uma cidade de olhos, às vezes tristes, que aprenderam a falar enquanto a boca se esconde atrás das máscaras. Num tempo em que o coração enfrenta o luto sem despedidas, boas ações se fazem extremamente necessárias. Enquanto passeio em pensamentos, remeto-me a uma experiência que vivi anteriormente à pandemia e trago uma reflexão sobre atos de bondade e sua presença em nossa vida, ontem, hoje e amanhã.

O parque havia se instalado no centro da cidade, atraindo olhares curiosos de adultos e crianças. As luzes, as cores, os diferentes brinquedos encantavam a população que por ali passava, incluindo a mim. Eu, que não estava empregada, fazia apenas alguns trabalhos como freelancer. Após acumular algum dinheirinho, resolvi gastar com essas pequenas futilidades consumistas, como todo mundo, então fui ao parque de diversões, ou, para mim, parque de ‘amedrontação’!

Fui acompanhada, comprei algumas fichas e escolhi o pior brinquedo, pois, quis parecer corajosa. Após o desastre de contemplar a vida e morte pelo alto, concluí que andar pelo local e admirar já era o bastante para mim, porém, sobraram duas fichas, a minha e a de meu companheiro.

Paramos para observar a Roda Gigante e decidir o que faríamos com os bilhetes restantes, quando duas crianças indígenas se aproximaram de nós. Os pés descalços, as roupas surradas e os cabelos despenteados ofuscaram-se diante do brilho daqueles grandes olhos negros, sorridentes. As pequenas meninas não disseram uma palavra, apenas estenderam as mãos. Meus olhos buscaram os de meu companheiro, que, ao mesmo tempo, fitavam os dois ingressos na mão, e eu não tinha mais nenhum dinheiro.

Nenhuma palavra precisava ser dita; já sabíamos o que fazer! Entregamos os bilhetes às meninas que estenderam um sorriso de orelha a orelha e saíram pulando pelo parque. Sorrimos também e caminhamos o trajeto de volta para casa sentindo os raios de sol acariciarem a pele. Sentimo-nos aquecidos, mas não era pelo sol, era o calor do coração!

Tantas crianças por aí querendo brincar, ainda pequenas demais para entender que lhe faltam os direitos básicos de sobrevivência de um ser humano, por vezes subjugadas e inferiorizadas por sua cultura, cor, e, nos olhos, a inocência e o desejo de serem vistas, assistidas.

O sol, que na paisagem ia morrendo manhosamente, fez-se grande em meu interior. Mas, ainda assim, não consegui ignorar o sentimento de impotência, pois, nada pude fazer para ajudar efetivamente, eu não tinha nada, mas vi ali nascer um desejo, um ideal e nenhum obstáculo me impediria de lutar por aquela ideia.

Nesse dia o sol nasceu em minha vida, assim como a consciência social, numa perspectiva de mudança. O sol que habita em mim, também viva em você! Às vezes está oculto entre nuvens, mas está aí. Para além de religião, um ato de bondade é a atitude mais simples que se espera de alguém.

Atualmente, considerando a pandemia que nos envolve, um ato de bondade, além da doação material, também é uma palavra amiga, de conforto, consolo, é o pão da alma! Lembro-me daquele dia com muito carinho e penso que, se doarmos mais, seja material ou através da entrega do tempo, ou uma palavra amiga, contribuiremos para a construção de uma sociedade mais empática, acolhedora, que dê visibilidade às minorias. No futuro, imagino, as crianças não estarão nas ruas, pedindo esmolas, mas nas escolas, e a única fome que terão será a de conhecimento, mas, para isso, o sol precisa brilhar em nós!

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.