Sexta-feira, 26 de Abril de 2024

Coluna Lettera: ‘Olhando a vida pela janela’, por Francielly da Rosa

2021-11-24 às 16:45

Olhando a vida pela janela

O rádio anunciava a chegada de mais um dia. As vozes que outrora traziam boas notícias agora eram temidas. Após ouvir o obituário a avó desligava o rádio, dirigia-se até a televisão e repousava um pequeno copo de água enquanto esperava o padre iniciar a missa. Em harmonia com a reza advinda do televisor, um pequeno sabiá, parecendo adivinhar o horário, pousava em seu portão e, da janela, ela permanecia assistindo aquele gracioso show.

Em sua casinha sempre recebia a visita dos filhos, netos e irmãos. Preocupava-se com a situação da pandemia, mas não sabia dizer não às visitas tão queridas. Incomodados com aquela preocupação considerada exacerbada, alguns insistiam em convencê-la a não ter medo de um simples vírus, amparando-se em teorias e boatos equivocados. A pobre senhora juntava as mãos como quem reza em silêncio e começava a se questionar sobre os fatos que ouvia: “Será?”.

Pela janela via a vizinhança movimentada andando tranquilamente pelas ruas, sem máscaras, sem preocupações, sorridentes e confiantes. O longo obituário passou a ter rostos conhecidos, e cada dia mais ela tinha certeza da escolha que fez: acompanhava a vida pela janela.

Numa manhã sentiu-se mal, algo que sentia há dias, mas não se incomodou com isso. Abriu a janela e percebeu que o ar custava a entrar, tentou respirar fundo, mas era difícil, fechou os olhos por um minuto, ouviu o cantar do sabiá no portão, sentiu os raios de sol acariciando-lhe a pele, olhou pela janela as crianças brincando, os vizinhos festejando e pensou: “Será?”.

Amanheceu mais um dia, a janela não se abriu, o rádio e a TV estavam desligados, o copo no armário, os filhos chegaram como de costume, mas a casa desfez-se no silêncio fúnebre da despedida. Assim a família positivou para o vírus, para o lamento e a culpa. E da janela daquela pequena casinha a vida já não se vê, restando apenas o cantar do sabiá.

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.