Olhando a vida pela janela
O rádio anunciava a chegada de mais um dia. As vozes que outrora traziam boas notícias agora eram temidas. Após ouvir o obituário a avó desligava o rádio, dirigia-se até a televisão e repousava um pequeno copo de água enquanto esperava o padre iniciar a missa. Em harmonia com a reza advinda do televisor, um pequeno sabiá, parecendo adivinhar o horário, pousava em seu portão e, da janela, ela permanecia assistindo aquele gracioso show.
Em sua casinha sempre recebia a visita dos filhos, netos e irmãos. Preocupava-se com a situação da pandemia, mas não sabia dizer não às visitas tão queridas. Incomodados com aquela preocupação considerada exacerbada, alguns insistiam em convencê-la a não ter medo de um simples vírus, amparando-se em teorias e boatos equivocados. A pobre senhora juntava as mãos como quem reza em silêncio e começava a se questionar sobre os fatos que ouvia: “Será?”.
Pela janela via a vizinhança movimentada andando tranquilamente pelas ruas, sem máscaras, sem preocupações, sorridentes e confiantes. O longo obituário passou a ter rostos conhecidos, e cada dia mais ela tinha certeza da escolha que fez: acompanhava a vida pela janela.
Numa manhã sentiu-se mal, algo que sentia há dias, mas não se incomodou com isso. Abriu a janela e percebeu que o ar custava a entrar, tentou respirar fundo, mas era difícil, fechou os olhos por um minuto, ouviu o cantar do sabiá no portão, sentiu os raios de sol acariciando-lhe a pele, olhou pela janela as crianças brincando, os vizinhos festejando e pensou: “Será?”.
Amanheceu mais um dia, a janela não se abriu, o rádio e a TV estavam desligados, o copo no armário, os filhos chegaram como de costume, mas a casa desfez-se no silêncio fúnebre da despedida. Assim a família positivou para o vírus, para o lamento e a culpa. E da janela daquela pequena casinha a vida já não se vê, restando apenas o cantar do sabiá.