Sábado, 16 de Novembro de 2024

Coluna Lettera: ‘Onde é que Deus mora?’, por Francielly da Rosa

2023-07-03 às 11:27
Foto: Reprodução/Freepik

Onde é que Deus mora?

Um modelo em exposição mostrava um globo transparente com minúsculas bolinhas azuis em seu interior. O folheto informativo dizia: “Este é um modelo de quantas ‘Terras’ caberiam no Sol.” Dentre todos os outros projetos – maquetes coloridas, planetas giratórios e projeção de constelações – era o globo quem chamava a atenção do menino. O garoto ficou olhando para ele, sentindo-se pequeno, cada vez menor… e  foi diminuindo. Soltou um suspiro. Uma joaninha vermelha de pintas pretas pousou em uma de suas mãos, que estavam apoiadas na bancada da exposição. Ele olhou para ela com tamanha serenidade que, por um momento, tornou-se grande novamente.

Levou a mão próxima aos olhos para contemplar com mais atenção o pequeno intruso, enquanto a joaninha andava com as pequenas perninhas pela palma, depois pelos dedos, até que chegou bem na pontinha. Lá chegando, fez do pequeno dedo indicador seu pedestal. O menino aproximou ainda mais o dedinho dos olhos, que agora convergiam ao encontro da imagem pequena que se delineava naquele palco. A joaninha abriu as pequenas asinhas e voou. O menino sorriu.

Depois, sentindo-se pequeno novamente, olhou para o projeto na mesa, olhou para os lados, observando todo o movimento de pessoas e o alvoroço de crianças ao redor. Encontrando-me ao seu lado com o olhar, disse:

– Você sabe onde Deus mora?

Como distraía-me a observação e leitura dos informativos dos pequenos projetos não atentei à pergunta, porém, instintivamente voltei o olhar na direção do enunciador. Ele, percebendo a expressão de dúvida que talvez povoasse meu rosto, repetiu:

– Você sabe onde Deus mora?

– Não sei…, respondi.

– Acho que Deus mora no Sol, disse o garoto, voltando os olhos para observar o globo transparente repleto de mini esferas azuis no interior.

Antes que eu pudesse responder, ele continuou:

– Por isso, ninguém jamais poderá chegar ao Sol… E é por isso que ninguém nunca poderá conhecer verdadeiramente a Deus… Nós ainda somos muito pequenos para entender.

Levantei as sobrancelhas em admiração e sorri. Ele não viu, pois ainda mantinha um olhar sereno focado no pequeno projeto. Logo, uma mulher aproximou-se esbaforida, trajando um jaleco branco. Imaginei que fosse a professora.

– Procurei você pela feira inteira! O que nós conversamos sobre não se distanciar do grupo? Vamos! Eles já estão lá na frente!

A mulher mal notou minha presença, saiu conduzindo o menino pelo braço. A ovelha desgarrada. O menino nada disse. Saiu sereno, contemplativo, observando as miudezas dos mundos expostos nas bancadas. De repente, parado ali sozinho, me vi desorientado, soltei um suspiro pesado, como se através dele fosse possível exaurir todos os meus pecados e também as minhas certezas. E, por um momento, tornei-me pequeno também. Onde é que Deus mora?

Procurei mais uma vez o menino com o olhar, ele agora seguia ao longe, quase arrastado pelo braço, enquanto a mulher andava à frente, segurando-o pelo pulso e chamando-o com nervosismo e pressa, o que não parecia afetá-lo nem um pouco. Olhei novamente para a bancada, arrumei os óculos e aproximei o rosto. As bolinhas azuis em comparação com o sol são realmente ínfimas.

Voltei para casa acompanhado pela presença divina a distribuir raios calorosos por todo o caminho. A tarde caiu, e quando os raios já iam sumindo no horizonte, saí até a janela. Assoprei com cuidado a xícara de chá em mãos, tomei um gole. Fiquei me perguntando… Deus, onde é que Tu moras? Estendi o olhar ao além e a tudo ao redor. A luz do sol tornou-se uma migalha deitada no chão do vasto horizonte.

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.