Sexta-feira, 27 de Setembro de 2024

Coluna Lettera: ‘Risco de queda’, por Francielly da Rosa

2024-09-20 às 15:55
Foto: Freepik

Quando o sol de um amor cativo acendeu no peito um fogo brando e os sorrisos e vozes se misturaram entre os passos pela sala, atordoei. Senti sobre a cabeça um peso estranho, como se rompesse algo dentro de mim que eu ainda não soubesse e só viesse a conhecer logo depois, quando a visão voltou aos olhos, afugentando a penumbra que os tomara num lance. Sorri, então, diante do rosto ralado do menino.

Os olhos atravessados pela sala ainda fitaram a menina de cabelos enrolados sorrindo, e aquele sorriso brilhava, brilhava em cada novo riso que rompia a tez corada. Os pés ágeis corriam pela sala. Agora era um menino moreno que levantava correndo e cruzava o corpo entre os outros. Esguio. Esquivo. Sorria miúdo. A camiseta rasgada no ombro, camiseta de números maiores que o seu. Ele veio até a minha mesa, tomou um ar de seriedade e disse-me algo, uma reclamação pequena, entre palavras quase vazias, sobre um colega que o perturbou com uma expressão marota qualquer.

Quase não pude ouvi-lo; perdi os olhos e os recuperei com muito custo, percebendo agora que perdi também os ouvidos. Todo o meu corpo se tornara uma matéria inerte, um amontoado de células vibrantes e vivas que acompanhava tudo: cada rosto; cada jeito; cada voz; cada pequena alma singular que habitava os corpos morenos e agitados.

Num ímpeto, uma pontada aguda apagou a luz do olho direito e fez correr pelo corpo uma tontura meio leve, um formigamento estranho e quase sedutor, pois fazia o corpo entregar-se a ele. A memória perdeu-se num fio e depois retornou numa fração de segundos, mas uns segundos demorados que se esticavam sem romper de fato a batida regular do relógio.

Um menino, de repente, abaixava a cabeça na mesa meio tristonho e rabiscava algo qualquer na folha branca. Eram traços duros e formas vibrantes e enegrecidas. A gente fica sorrindo e suspirando nessas horas; os sentimentos vagueiam entre as pequenas alegrias e depois descem ao rés do chão do sentimento normal, para depois cair numa melancolia turva.

O sol resolveu presentear-nos hoje, espraiando raios pela sala de decorações azuis. O raio de sol claro refletia o desenho escuro do menino e o semblante aparentemente vazio, mas cheio de significados. Estes são os mistérios ocultos, penso. Mas nada permanece verdadeiramente oculto. Há sempre uma fresta aberta que não podemos fechar, inscrita em nosso semblante, no trejeito e no olhar caído.

As vozes pela sala foram se calando. Já não os ouvia, não porque as vozes tivessem se calado realmente, mas porque os meus ouvidos estavam mudos. Assistia agora a um punhado de faces sorrindo, mudando, e as bocas abrindo e fechando mudas. Num rompante, o silêncio quebrou-se. Ouvi ao pé do ouvido a voz doce tirar-me do mudo e dizer num abraço: “Professora…” Sorri. Talvez tenha piscado algumas vezes ainda no entremeio do sonho. O espírito arrastou-se então às horas da tarde do dia anterior, quando, saindo do trabalho, passei no pronto atendimento. A cabeça doía só de um lado e o corpo, do mesmo lado, amortecia.

“O que você sentiu é uma crise de enxaqueca… em virtude de estresse e ansiedade… Você passou por alguma situação de estresse? Quando iniciaram esses sintomas?” Sorri e respondi: “Sou professora…” A médica me olhou e sorriu, resumindo em uma palavra: “Explicado…”

Um comprimido de ansiolítico e duas injeções. Um atestado de dois dias. Ignorei. Na manhã seguinte, trabalhei normalmente. “Eles precisam de mim!” E cá estou. A cabeça gira e as pontadas agudas retornam. Acho que o efeito do remédio passou. Restam-me os olhos meio turvos e úmidos, campo onde as imagens translúcidas se dissipam.

Volto instantaneamente para o momento das injeções doloridas, e, um a um, os pequenos rostos vão se pontuando em minha frente como molduras vivas, tristes e alegres, vibrantes e dormentes, e eu sorrio. Vejo o menino de cabeça baixa rabiscando a folha preta. Ele segue arrebanhado pela tristeza dos abandonos e dos conflitos familiares. Num flash, outra imagem. De repente, em minha frente, pinta-se o menino magrinho, baixote, de olhos negros e fala inteligente. “Lembra que eu disse que minha mãe ia ser presa, prô? … Pois é… ela já foi.” Outro menino veio e somou-se ao primeiro, entregando-me um bilhetinho que dizia: “Se eu pudesse pedir algo a Deus, eu pediria que trouxesse de volta minha mãe… pois não sei sorrir desde que ela morreu!” Ele abaixou a cabeça meio tímido e a imagem, como uma cortina de fumaça, abriu-se enquanto a enfermeira aplicava a segunda injeção.

Suspiro. Outra porta se abre e um menino corre sorrindo até a outra porta. Uma porta se fecha e outra se abre. O menino as entrecorta. “Prô, acho que o meu pai tá envolvido com droga… por isso eu e minha mãe vamos ir embora… Eu vou sentir muita falta do meu pai, prô…” Outra voz entrecortava esta anterior, dizendo: “Já não me importo com nada mais mesmo! Quero crescer logo e virar pedreiro, aí tenho uma muié, um filho e depois vou comprar cigarros e sumo.” Um riso alheio ecoava frouxo, para meu espanto… “Eu odeio a minha família!” gritava o outro. Depois vinha a figura de uma menina alegre correndo leve entre os corredores de imagens, portas e janelas de mim. “Eu queria compartilhar meu sentimento com você, profe… Eu me sinto muito triste, às vezes, eu só queria dar orgulho pra minha mãe, mas parece que ela não vê as coisas boas que eu faço!” … “Vai ficar tudo bem, querida! Você é uma menina inteligente e forte! Vai ficar tudo bem!” – respondi.

Voltei para a sala de observação do pronto atendimento, enquanto uma pulseirinha laranja era colocada em meu braço esquerdo. “RISCO DE QUEDA” eram as palavras que a marcavam. “Você pode sentir sonolência e tontura. Ficará uma hora em observação.” Ok. Antes, não tinha entendido qual a razão para todo esse estresse habitando o espaço compacto do meu corpo… Só agora, pela manhã, olhando para todos esses pequenos rostos, eu entendia… Não poderei salvá-los! E a ideia de perdê-los é atordoante. Vão-se um a um por caminhos íngremes e bem sei que nem todos eles resistirão. Alguns, quem sabe, por ironia do destino e pela má-sorte, tropecem nos mesmos erros dos pais; outros se darão por vencidos… Alguns vão se acomodar com uma vida simples e infeliz, e só alguns conseguirão, apesar das asperezas da vida, tornarem-se rochas sólidas e fortes, resistentes ao tempo e ao vício. Não poderei salvar a todos, e isso me dói, por certo. Não que me coubesse o papel de salvadora, mas porque, vendo-os tão capazes e inteligentes, ainda me frusto quando deparo com a situação tão árdua de alguns lares.

Não estou em crise pelo trabalho, porque trabalho por uma causa e por uma razão maior, mas estou em cheque diante da realidade dura da vida… vida a qual assisto o reflexo pequeno, dia após dia, em minha frente… e dói…

Quem sabe pudéssemos nós também colocar no pulso de alguns a mesma fita que abraçou o meu no pronto atendimento: “risco de queda” e então faríamos todos nós o possível para não os ver cair. Todos nós vemos, mas aqueles que lhes são mais próximos não. Por vezes, são os mesmos a arrastá-los, ainda tão crianças, para o mesmo buraco em que caíram na vida adulta.

A realidade dura é o choque e o meu colapso. “Profe, ninguém nunca falou assim comigo antes!” E depois um abraço surgiu.

Descobri, nesse meio tempo, que eu os amo, e, por amá-los, ainda sei sofrer um pouquinho o sofrimento de cada um. Vou acolhendo-os num colo que muitos não conhecem, mostrando-lhes palavrinhas de amor e carinho que acabam por ouvir pela primeira vez… e, pouco a pouco, vou descobrindo que a maior lição da escola transcende o simples ensinar a ler e escrever. Nós acabamos também ensinando a caminhar uma vida mais leve, um sentimento mais calmo e mais puro e vamos nós também aprendendo com as durezas das vidas deles a sermos a praia que acolhe a onda e não a rocha em que ela ricocheteia.

Não poderei salvar a todos, não! Mas não me resta senão a esperança de fazer o pouco que possa e de ver o sol brilhar no amplo horizonte da vida miúda e singela de cada um.

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.