Ser do Sul
No caminho de volta para casa, a paisagem noturna cobria-se por um fino véu branco. O avô explicava para o neto, que ouvia atentamente.
“- Aquela fumacinha branca lá no fundo… Está vendo em volta da luz do poste, lá longe? Aquela fumacinha é a cerração que eu te falei.”
O frio corava os rostos. Contraposta a cena do avô e seu neto, vê-se uma casinha simples, na qual a chaminé solta uma fumaça leve que sobe e vai se confundir com os tons de cinza, sumindo no cenário da noite. Fumaça de fogão a lenha, imagino. No outono, o frio se ensaia, vai tomando corpo para depois se fazer inverno. As pessoas também ensaiam, vão aprontando a lenha, o fogão, que acendem durante a noite para esquentar a casa – costume antigo. Naquela fumaça, vinda de um fogão a lenha, imagino, alguém colocava sobre a chapa um punhado de pinhões, aprontava uma bebida quente. Nos pés, chinelo e meias.
Em outro lugar, outro cenário se pinta. Nos tons alaranjados das tardes de outono, o menino espera, anseia, aguarda alguma poncã cair lá do topo da árvore. Sempre o topo a sustentar as mais suculentas, redondinhas, gordas. Sempre no topo, nunca as mais próximas às mãozinhas ansiosas do menino. A paciência esvai-se, entrecortada por um pequeno acesso de tosse. E o guri sai pelo quintal procurando, procurando. O que quer? Quer uma vara para alcançar as suculentas e redondinhas poncãs lá do topo. Para a infelicidade do garoto, nada encontrou. Pediu a um adulto, outro, nenhum alcançava. Teve que aceitar as poncãs mirradinhas do meio da árvore, pequenas, mas boas. É, eram boas, sim!
Em algum outro lugar, dois amigos coletavam os pinhões caídos aos pés de uma imponente araucária. Olhavam a árvore de cima a baixo, estudando, pensando. Lá no topo uma pinha, grande, convidativa, mas inacessível. O que fariam? Planejaram. Arrumaram uma corda para “pescar” a pinha.
“- Deixa que eu jogo que eu tenho mais força.”
A corda subiu, fez ares de vitória e depois caiu em derrocada. O amigo que aguardava, ria. O outro cerrava os olhos, fazia cálculos. A corda tornou a subir mais uma, duas, três vezes. Logo as tentativas passaram de dez, para o riso do espectador e dor nos brios do outro. Na última, a esperança surgiu, abraçou um dos galhos do imponente pinheiro do Paraná. O rapazola comemorou.
“ – Puxe devagar, advertia o amigo.”
“- Deixe comigo, piá! Deixe comigo!”
Os ares de orgulho da vitória não puderam deixar que puxasse com leveza.
“- Vai derrubar o galho inteiro desse jeito, a gente só quer a pinha! ÓIA! Vai derrubar o galho inteiro!”
E o amigo redarguiu irritadiço:
“- ARA! Pois, deixe comigo, piá! Deixe comigo!”
E puxou uma vez. O safanão desajeitado derrubou apenas as grimpas da árvore. Puxou duas e o galho curvou-se. O outro afastou-se e gritou:
“- ÓIA! Vai derrubar o galho inteiro, home do céu!”
“- Deixe comigo, piá! Deixe comigo!”
No terceiro puxão o galho cedeu e veio a baixo com a mesma força desajeitada do puxão, acertando o rapaz na cabeça. De um lado ouvia-se os risos de um e do outro um “ai” agudo e sonoro.
“- Eu falei, home de Deus! Eu falei!”
Chego em casa, ouço a história que acima relatei e fico pensando nas coisas, nas pessoas, nos trejeitos de ser do sul. A água ferve no fogão, mas o meu não é a lenha. O barulho da água borbulhando me lembra de minha avó tomando chimarrão. Agora, penso, entre memórias saudosas, ela deve estar tomando chimarrão, de chinelo e meias, lá no céu. Olho pela janela a fumaça da chaminé da casa vizinha, lembro do gosto do pinhão na chapa do fogão a lenha. Paro, fecho os olhos, penso na outra avózinha.
“- Já vou fazer setenta anos, fia! Setenta anos! Imagine só!”
Encho um copo com o quentão maravilhoso que ela faz, enquanto suas palavras ecoam em minha mente. Nossa! A vó vai fazer setenta anos!
Desperto dos sonhos, abro os olhos. Vejo a fumaça pela janela, vejo o avô, o neto e a cerração. Relembro o menino pegando poncãs. Ouço a história contada. Sinto o cheiro do chimarrão. Sinto o cheiro da minha avó. Sinto cheiro de memória. Acho que tudo isso é ser do sul.