Quarta-feira, 06 de Novembro de 2024

Coluna Lettera: ‘Vinte e seis desassossegos’, por Francielly da Rosa

2024-09-24 às 15:44
Foto: Freepik

Caio sempre nesse desassossego de ser… Já é primavera! Viraram-se as estações, e a primavera traz sempre alguma robustez e vivacidade para esses meus anos envelhecidos. Estou completando a vigésima sexta volta em torno do meu próprio eixo, e talvez isso explique a tontura que me enfada nos dias que antecedem a data. Vinte e quatro de setembro… Um belo dia, afinal!

O canto dos pássaros pela manhã ainda segue sendo minha melodia predileta. O dia nasce comum para os outros e especial para mim. Gosto de observar o céu matutino através da minha janela, como se observasse uma moldura viva onde, para o deleite dos olhos, há uma espécie de vida singular acontecendo, miúda e discreta. Os pássaros saltitam nos fios de luz, que são os princípios de rastros de homem, entrecortando a naturalidade divina. Depois, vão surgindo os galhos de laranjeira, onde os sabiás brincam de roda e eu brinco de vida. As árvores vão se amontoando no canto esquerdo da minha visão, misturando-se pitangueiras, um pé insistente de Araticum-alvadio e a sombra do pessegueiro que há muito o tempo corroeu e o homem terminou por derrubar.

Quando menina, costumava explorar esse pequeno quadro repleto de segredos naturais que só se revelam quando aproximamos os olhos. Olhava para as pequenas folhas das árvores e descobria nelas uns bichinhos pequenos, umas joaninhas multicolores – as amarelinhas chamávamos de “vaquinhas”, ainda que eu não saiba muito bem a razão até hoje. Havia ainda pequenas pitangas alaranjadas que nos entregavam, em galhos espaçados, os pequenos frutos. Olhava com atenção cada um e, então, descobria um furinho qualquer que me freasse o impulso da retirada e da mordida. “Este não como, porque o sabiá já bicou e então o tem para ele…”

Seguia o hábito quase ritualístico e ia descobrindo uma vida nova a cada instante. Uns grilinhos miúdos, cor de terra, saltitavam quase invisíveis aos olhos, outros caramujos graúdos iam deixando rastros vagarosos pela terra mansa e úmida, e, também, para meu contento e infelicidade delas, havia as tão queridas minhocas, rolando e enrolando debaixo dos terrões e dos tijolos, procurando um abrigo úmido e fugindo dos meus dedos avermelhados e das unhas sujas de barro.

Era ainda debaixo destas árvores que cozia os meus famosos bolinhos de barro e qualquer outra coisa que eu encontrasse pelo caminho… Olho para o recorte da janela e vejo a árvore tão velha. Nós nos olhamos nostálgicas. “Te vi assim tão menina e já se encontra agora tão mulher”… ouço o som doce dos seus galhos balouçando uma saudação que traz mil lembranças. Percebo que troquei as mãos sujas de barro pelo pó de giz e o terreno de bichinhos pela sala de aula. Vinte e seis anos então!

“Você vai fazer churrasco para o seu aniversário?”

“Não vou, não…” respondo quase automaticamente, porém os olhos ficam inertes, presos naquele fragmento da imagem contrastada entre o antes e o agora. Já há uma grande festa acontecendo ao meu redor todos os dias. Para que mais? Já há um bocado de tumulto entre o ir e vir agitado da gente e dos galhos que o vento de primavera balança, dos esforços das flores para desabrochar e do suspiro que revela a formosura da flor que depois, sem graça, murcha, pois ninguém sequer a notou no meio daqueles galhos e folhas contorcidas.

Eles insistem no diálogo morto e eu ainda no entremeio do pensamento.

“O que quer de presente?” – perguntam-me sempre para o meu enfado. Se fosse possível, quereria o silêncio… Este tão zeloso amigo que nunca me fugiu um segredo, e que me envolve desde a tenra idade para que a mudez da voz seja substituída pela atenção dos olhos, pelo prazer do tato e do ouvido que aprende a ser ainda mais atento. Quero o silêncio que seja entrecortado pelo chilrear das árvores canoras que, embriagadas de vida, vêm vibrar nos galhos da laranjeira o seu destino. Quero também, já que me arrastam ao pedido, solicitar que, de algum modo, me arrumem jeito para fazer regressar ao menos por um dia curto as memórias dos dias de menina, para que eu liberte todos aqueles bichinhos que prendi outrora naquela caixinha de onde quis fazer o meu próprio mundo e que, por ânsia, sufoquei lhes a vida.

São vinte e seis! Anos velhos para mim, que os sinto sempre duplicados. Anos em que aprendi, no desassossego de ser quem eu sou, que a vida pequena é fruto bem mais doce… e não há nada mais doce do que a pequenez de se deixar caber num abraço, de saber cair nos rios dos sorrisos sem que o medo de parecer tolo lhe tolha a vontade, sem que as ventanias dos dias te arrebentem a coragem de permanecer sendo quem és! Ah! Vinte e seis e um segredo me é revelado! Quando chegarem vinte a mais, ainda outro segredo me será contado. Para hoje me basta a vida que eu aprendi miúda, debaixo da terra das unhas, no entremeio do olhar que contempla o buraco da fruta, no contorcer da minhoca e no cantar do sabiá. É dia vinte e quatro e faço vinte e seis… encerro um ciclo para “primaverar” outro, outra vez!

Coluna Lettera

por Francielly da Rosa

Francielly da Rosa é graduada em Letras Português e Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, com ênfase em estudos literários, também na UEPG. Ela é escritora, cronista e coautora do livro "Crônicas dos Campos Gerais". Descobre, entre as palavras que lê e escreve, a motivação que sustenta seu viver. Escreve crônicas, contos, poesias e, às vezes, se aventura no gênero romance. Além disso, participa de projetos de incentivo à leitura e de outras atividades culturais. Possui diversas crônicas premiadas e publicadas em jornais e sites locais. Em virtude de seu trabalho como escritora, recebeu duas moções de aplauso da Câmara Municipal de Ponta Grossa. Também foi premiada no Festival Literário de São Caetano do Sul, na categoria miniconto, sendo a única representante da cidade de Ponta Grossa.