O valor das regras fiscais
Foi visto, nesta coluna, na semana passada, que as regras fiscais surgiram para fornecer a credibilidade necessária às políticas econômicas, e evitar as inconveniências da inconsistência temporal. De 1991 a 2016, o gasto primário do Governo Central cresceu cerca de 6% ao ano, passando de 11% do PIB em 1991 para 20% do PIB em 2016. Neste período, o resultado primário foi superavitário em aproximadamente 1% do PIB. Mas, a partir de 2016, o resultado primário tem sido negativo em cerca de 2,5% do PIB, gerando forte pressão sobre o endividamento público. Com isso, as dívidas líquida e bruta do governo vêm crescendo continuamente, e hoje estão próximas a 60% e a 80% do PIB, respectivamente.
Em 2021, espera-se um déficit primário na ordem de 3% do PIB, contudo, para manter a estabilidade da dívida pública em um ambiente com uma taxa básica de juros em torno de 9% ao ano, com crescimento do PIB em 5% e nível da dívida de 60% do PIB, o resultado primário teria que ser superavitário em mais de 2%. Logo, existe uma lacuna de 5% do que será obtido em relação ao que deveria ser alcançado para a dívida pública não crescer. E isto pode piorar com um fraco crescimento, pois nessas mesmas condições, mas com o Brasil crescendo 1,5%, o superávit primário teria que ser superior a 4% (lacuna indo para 7%). Resumindo, o Brasil está longe da sustentabilidade fiscal.
Este problema tem origem na forma de utilizar o déficit fiscal, pois este tem que ser usado para amortecer choques temporários dos ciclos econômicos, ou seja, quando a demanda agregada diminui (talvez por aumento do risco percebido pelos empresários), os estabilizadores automáticos da política fiscal (como o seguro-desemprego, por exemplo) ajudam a suavizar o momento recessivo, e isso aumenta a dívida pública. E em momentos de expansão econômica, esses estabilizadores são menos utilizados e, dado o aumento na receita, a dívida pública diminui.
Resumindo, a política fiscal deveria ser usada de forma contracíclica. Contudo, nos países emergentes, especialmente no Brasil, choques temporários são tratados como choques permanentes, e o gasto público é aumentado como se a elevação na receita fosse permanente, mas como o choque é temporário, a receita volta ao seu nível inicial, gerando déficit fiscal. Neste caso, as políticas fiscais são pró-cíclicas, isto é, nas expansões econômicas o déficit fiscal leva a dívida pública para níveis insustentáveis, inviabilizando a política fiscal expansionista em momentos recessivos. Para problemas como este, passou-se a recomendar regras fiscais com o objetivo de permitir que os governos tivessem instrumentos para atuar na contramão do ciclo de atividade econômica, isto é, contra ciclicamente.
A literatura econômica chama de viés deficitário do setor público o desejo dos agentes econômicos pelo aumento do gasto público. Isto se deve a informação limitada das famílias, pois não enxergariam o funcionamento da restrição orçamentária do governo, tendendo a superestimar os benefícios dos gastos correntes e subestimar os custos fiscais a eles associados, ou seja, sofreriam de “ilusão fiscal”. O viés deficitário do setor público também é percebido entre políticos e grupos de pressão, que buscam proteger, com gastos maiores, a parte da sociedade que representam. Logo, as regras fiscais foram criadas para conter esse viés deficitário do setor público.
De um modo geral, espera-se que regras fiscais sejam: bem definidas; transparentes; simples; adequadas a determinados objetivos; consistentes com outras políticas macroeconômicas; suficientemente flexíveis para acomodar choques exógenos; críveis; e apoiadas por políticas que garantam sua sustentação no médio e no longo prazos.
Atendidas as condições acima, o foco passa a ser na escolha da variável a ser limitada, entre as quais se destacam: a dívida; a despesa (gasto); e o resultado. Cada uma tendo vantagens e desvantagens. Regras sobre a dívida possuem a atratividade de que esta variável é o principal objetivo da sustentabilidade fiscal, além disto, é simples e transparente. A desvantagem é que diversos fatores, que podem impactar a trajetória da dívida, estão fora do controle da autoridade fiscal, tais como as taxas de juros e a taxa de câmbio.
Já regras sobre despesa fornecem uma solução para o curto prazo, já que o governo tem controle sobre a variável em questão, também é simples e transparente. Contudo, a desvantagem está na menor relação com o objetivo da sustentabilidade fiscal, pois controla a despesa, mas não leva em conta a receita. Outra desvantagem, e a maior crítica dos especialistas, é que pode afetar negativamente a qualidade do gasto, ou seja, diminuir o gasto em setores essenciais como educação, saúde, entre outros. As regras de resultado também são importantes para fornecer uma direção de curto prazo e possuir maior grau de relação com a dívida pública. Entretanto, para os casos nos quais a meta é desenhada levando em conta o resultado nominal, o alcance dessas metas passa a depender de variáveis que estão fora do controle da autoridade fiscal, como a taxa de juros, por exemplo.
Vários países combinam duas ou mais regras fiscais, sendo o mais frequente combinar regras para a dívida com regras para o resultado fiscal, as últimas ajudando a guiar policymakers na gestão da política fiscal de curto prazo. Neste contexto, as três principais regras fiscais em vigor no Brasil são: regra de ouro; regra de resultado primário; e o teto de gastos.
A regra de ouro é a mais antiga das regras fiscais expostas aqui, tendo sua origem na Constituição Federal de 1988. Sua definição é simples e diz que o governo não pode emitir dívida a não ser que seja para investir. Com o tempo, esta regra foi desvirtuada, e aumentou-se a definição do que seria o investimento. Além disso, do lado da receita, usou-se receitas de todo tipo, como lucro do Banco Central, devolução de recursos do Tesouro emprestados ao BNDES etc. E desde 2019, o expediente utilizado para evitar o seu descumprimento formal tem sido condicionar esse volume de despesas à aprovação de crédito extraordinário pelo Congresso Nacional. Já a regra de metas para o superávit primário foi instituída formalmente pela LRF, de 2000, mas na prática já valia desde 1999. Da mesma forma do que a regra de outro, esta regra foi desvirtuada com o tempo, permitindo o abatimento dos gastos com investimentos entre outros mecanismos para contornar esta regra.
E o que significa o teto de gastos? Este representa o congelamento do valor real para o limite superior do gasto público, correspondente ao nível de 2016, por um período de dez anos, entre 2017 e 2026. É importante destacar que o teto não se aplica a todo o universo da despesa pública, exclui-se transferências a estados e municípios, e principalmente, gastos sujeitos a grandes flutuações ou imprevisíveis – por exemplo, créditos extraordinários – como estes usados para amenizar os efeitos econômicos da pandemia. A ideia da aprovação do teto era forçar medidas complementares – com destaque para a Reforma da Previdência – para evitar o seu rompimento.
Como visto acima, a regra de ouro e a regra de superávit primário já não são eficazes para sustentabilidade fiscal. Já o teto de gasto atingiu seu objetivo nos seus três primeiros anos, sendo que a expansão dos gastos diminuiu de 6% ano (média de 1991 a 2016) para 0,3% (média de 1997 a 1999). Mas este sucesso está ameaçado com os mecanismos propostos pelo atual governo. Assim, o Brasil poderá perder a última ferramenta de sustentabilidade fiscal, e o resultado disso já é conhecido: outra década perdida.