No dia 28 de junho de 2020, Raul Seixas completaria 75 anos. Para marcar a data, o Portal D’Ponta News, relembra o histórico show que o roqueiro baiano realizou em Ponta Grossa na década de 80. Cercada de lendas, a apresentação fixou a imagem de um Raul em fim de carreira, mas ainda persistente. Fernando Durante, Juca Francischini e outras testemunhas relembram o que aconteceu naquela mágica noite
Domingo, 14 de maio de 1989. Era Dia das Mães, data tradicionalmente reservada para se passar ao lado da família, mas isso não incomodou a legião de fãs que lotou o Ginásio de Esportes Oscar Pereira aquela noite. Mais de 3 mil pessoas se reuniram lá para ver no palco um Raul Seixas visivelmente debilitado e com sinais de embriaguez. O show realizado em Ponta Grossa, ao lado do músico e amigo Marcelo Nova, foi um dos últimos do cantor, que faleceria três meses depois.
O início, o fim e o meio
Em 1989, Fernando Durante era diretor do Departamento de Cultura de Ponta Grossa e desenvolvia a programação da Semana da Cultura Bruno e Maria Enei quando recebeu um telefonema inesperado. “Um empresário de São Paulo me ligou contando que o Raul Seixas estava retomando a carreira e perguntou se ele poderia fazer um show aqui. Como era um recomeço, não havia custo para a prefeitura e a única exigência era que eles ficassem com a bilheteria”, conta.
As condições de saúde do músico impediam que ele participasse de todo o show e metade de apresentação era conduzida apenas por Marcelo Nova. Embora as más notícias já tivessem se espalhado por todo o país, Fernando garante que não teve nenhum receio em aceitar a proposta. “O mais importante para as pessoas era ver o Raul e ter a oportunidade de estar perto dele. Ninguém cantou as dúvidas e as incertezas da juventude como ele”, avalia.
“O mais importante para as pessoas era ver o Raul e ter a oportunidade de estar perto dele”
Fernando Durante
A apresentação foi um marco na história cultural de Ponta Grossa e deu origem a muitas lendas em torno da passagem de Raul pela cidade. Para Juca Francischini, um dos responsáveis pela produção do show, a maioria delas não passa disso mesmo: lenda. “A verdade é que nem a produção conseguiu falar com o Raul. Me pediram para levar um litro de uísque para ele no hotel, mas a garrafa foi entregue para o segurança. O máximo que eu consegui chegar foi até a porta do quarto”, relata.
Na avaliação de Juca, o público foi compreensivo e generoso com Raul. “Os fãs entenderam que estavam vivendo um momento histórico de poder homenagear o seu ídolo em vida. A imagem que fica é a de fragilidade, mas, ao mesmo tempo, de uma grandeza absurda”, reflete.
Tente outra vez
Um dos raros registros da apresentação é uma fita cassete gravada por Gian Hey, que à época tinha 13 anos. As lembranças daquele domingo estão nítidas em sua memória. “O Raul estava fazendo um grande esforço para ficar em pé. Ele chegou a cair. Acenderam as luzes e as pessoas estavam começando a ir embora quando ele retornou ao palco, minutos depois, para continuar o show”, lembra.
“A imagem que fica é a de fragilidade, mas, ao mesmo tempo, de uma grandeza absurda”
Juca Francischini
Gian, porém, prefere guardar as boas recordações de estar frente a frente com o ídolo. “O que fica é a força de vontade, o desejo de fazer o que gosta e a coragem de se expor daquela maneira. Mesmo doente, o Raul deixava a mensagem de que era preciso tentar outra vez, e era isso que ele estava fazendo”, afirma. Um dos momentos mais bonitos do show, na opinião dele, ocorreu durante a música “Sociedade Alternativa”. “Eu olhava para trás e via todo mundo cantando com o Raul. Foi emocionante.”
O espírito contestador que permeava os shows era uma das marcas do ídolo baiano. Durante a apresentação em Ponta Grossa, o roqueiro não poupou críticas ao então presidente da república José Sarney (1985-1990). “Sarney aperta o nosso pé a cada dia e a gente não tem opção nenhuma. A gente continua calçando um número a menos e faz calo no pé. Calo dói e é chato para burro”, disparou Raul.
Coisas do coração
“O Raul estava mal de saúde, mas não largava a bebida. Ele mal conseguia falar, cantava um pouco e parava. Às vezes era até difícil entender o que ele estava falando”, lembra Geraldini Mansani, que tinha 20 anos quando foi ao show. Suas lembranças se dividem entre o alcoolismo e a genialidade. “Independente do estado em que ele estava, foi uma das maiores emoções da minha vida. Foi um privilégio estar cara a cara com um gênio da música”, garante.
“Mesmo doente, o Raul deixava a mensagem de que era preciso tentar outra vez, e era isso que ele estava fazendo”
Gian Hey
A apresentação foi marcante não só para os fãs, mas para a própria esposa de Raul, Kika Seixas. Ela esteve em Ponta Grossa no ano passado, durante o Festival Universitário da Canção (FUC), e fez questão de agradecer a Fernando Durante. “A Kika ficou muito agradecida por termos dado aquela oportunidade ao Raul. A carreira dele foi marcada por altos e baixos, e a apresentação serviu de motivação num momento em que ele queria retomar a carreira”, revela Durante.
Trem das sete
Raul Seixas e Marcelo Nova se apresentaram em Ponta Grossa em maio e, no mesmo mês, gravaram o álbum inédito A Panela do Diabo. Raul não compareceria ao lançamento do disco, ocorrido em 19 de agosto, e morreria dois dias depois, vítima de uma pancreatite aguda causada pelo alcoolismo e agravada pelo diabetes. O trabalho rendeu ao cantor um disco de ouro póstumo pelas 150 mil cópias vendidas.
Por Michelle de Geus | Foto: Reprodução
O texto foi originalmente publicado na revista D’Ponta, edição 276, em setembro de 2019.