No mundo inteiro, estima-se que mais de 140 milhões de pessoas sofram de transtorno de bipolaridade, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Esse transtorno de humor, assim como outras doenças psiquiátricas, ainda não possuem uma cura, mas pode ser controlado por meio de terapia, acompanhamento médico e, em alguns casos, tratamentos com medicamentos. O que muita gente não sabe é que a alimentação pode ser uma boa alternativa para amenizar o quadro bipolar.
Cientistas têm estudado os efeitos da dieta cetogênica, que consiste em um menor consumo de carboidrato, sobre as alterações causadas pelo transtorno de humor. Esse tipo de alimentação consiste na priorização de ingestão de gorduras e proteínas, o que pode impactar o metabolismo do corpo e do cérebro.
A bipolaridade é um transtorno de humor que consiste em oscilações de humor, principalmente entre as fases de mania (consiste em elevação de humor, maior atividade mental, irritabilidade, poucas horas de sono, fala acelerada e comportamento arriscado), depressão (tristeza, falta de energia, desânimo, dificuldade para fazer atividades do dia a dia, choro frequente e pensamentos negativos) e normalidade.
Segundo o psiquiatra nutricional Régis Chachamovich, o transtorno de bipolaridade é mais comumente diagnosticado no fim da adolescência ou no início da vida adulta. A doença pode ser considerada desafiadora, já que pode variar de intensidade e níveis e pode demandar tratamentos por toda vida. “Há cada vez mais dados e um número crescente de experiências pessoais de indivíduos que estão usando a intervenção alimentar como ferramenta terapêutica para diversos destes transtornos”, diz o médico.
Essas avaliações são chamadas de “relatos anedóticos” e não são publicadas na literatura médica especializada; no entanto, há estudos que fortalecem a terapia alimentar em pacientes com bipolaridade. Portanto, psiquiatras ao redor do mundo, incluindo instituições como a Universidade de Harvard, passaram a usar essa ferramenta nos tratamentos.
De acordo com a médica nutróloga Laura Teixeira, existem diversos fatores que fazem com que a alimentação tenha impactos na manutenção da saúde mental. A primeira delas é a ingestão adequada de nutrientes que fomentam a produção adequada de neurotransmissores que promovem serotonina, dopamina e melatonina, melhorando a performance do corpo e a sensação de bem estar.
Entre os nutrientes capazes de fazer isso estão ácido fólico, cobre, cromo, ferro, magnésio, selênio, vitamina B12 e zinco. “Eles estão presentes em uma alimentação colorida, variada e baseada em alimentos in natura, minimamente processados”, aponta Teixeira. Ela explica que a ingestão de pratos agradáveis e coloridos também impacta nas emoções.
Além disso, uma boa alimentação é capaz de garantir um bom funcionamento intestinal. “O órgão é importante aqui porque possui conexões com o cérebro, com a absorção de nutrientes ingeridos e com a produção das substâncias do bem estar que podem melhorar ou piorar a saúde mental”, explica. Para manter a saúde do intestino, é importante incluir fibras e água na dieta.
Por outro lado, a alimentação também pode ser um inimigo e piorar a situação de diversas doenças psiquiátricas. Chachamovich explica que isso pode ser feito de maneira direta e indireta. A direta diz respeito ao tipo de dieta que consiste em produtos industrializados, processados e ultraprocessados, com carboidratos refinados e pouco valor nutricional.
“Esses alimentos promovem estados de inflamação; desbalanço de neurotransmissores, que mediam a comunicação entre os neurônios; estados de hiperatividade cerebral; aumento do estresse oxidativo, que danifica o DNA; diminui a capacidade das células do cérebro de produzir energia; entre outras alterações que estão na base de diversos transtornos psiquiátricos e neurológicos”, pontua o médico.
Indiretamente, esse tipo de alimentação é capaz de provocar obesidade, diabetes tipo 2 e outras patologias no metabolismo que elevam as chances de um desenvolvimento de transtornos psiquiátricos.
Teixeira explica que a dieta cetogênica é uma estratégia alimentar utilizada desde 1920 em casos de epilepsia infantil refratária. “Essa dieta é capaz de reduzir os níveis de inflamação, corrigir certos desbalanços de neurotransmissores, reduzir o estresse oxidativo, melhorar a produção de energia pelo cérebro, entre outros efeitos que têm potencial enorme como intervenção terapêutica”, complementa Chachamovich.
A médica nutróloga afirma que o baixo nível de ingestão de carboidratos, supressão do fornecimento de glicose e compensação por alta ingestão de gorduras. Essa privação torna possível a mobilização do estoque de gorduras do corpo por meio da liberação dos corpos cetônicos, que são lipídios de glicose produzidos pelo fígado, que se tornarão fonte natural de energia ao corpo.
“A dieta cetogênica propõe uma divisão calórica de 90% das calorias diárias advindas de gorduras, 6% de proteínas e 4% de carboidratos; sendo que a recomendação para dietas comuns sugere 60% a 70% de carboidratos, 10% a 15% de gorduras e 20% a 30% de gorduras ao longo do dia”, descreve Teixeira.
Atualmente, médicos e pesquisadores estão estudando se essa produção de glicose natural é capaz de regular alterações nas mitocôndrias, que podem estabilizar o humor e contribuir com a melhora do quadro bipolar. “É importante ressaltar a necessidade de indicação e acompanhamento médico e nutricional”, recomenda a médica.
Apesar de consistirem na diminuição de carboidratos, a dieta cetogênica é diferente da dieta Low Carb — aliás, o iG Delas já falou sobre mitos e verdades sobre a dieta low carb . No entanto, a principal diferença entre os dois estilos alimentares é o nível de ingestão de carboidratos que cada um permite. “Não há uma definição oficial do limite de carboidratos. Entre os profissionais que usam essas abordagens, há um entendimento de que uma dieta com menos do que 130 gramas de carboidratos por dia pode ser considerada low carb”, explica Chachamovich.
Teixeira complementa que, por causa dos picos de insulina no corpo, a dieta é geralmente usada com foco no emagrecimento. “No entanto, a eficácia nesse sentido tem se provado contraditória em estudos de longo prazo”, diz.
No caso da dieta cetogênica, são utilizados níveis mais baixos de carboidrato. A ingestão diária ideal é de menos de 50 gramas por dia. Dessa maneira, será propiciada a produção dos corpos cetônicos pelo fígado por meio do metabolismo das gorduras, o que deve impactar de forma positiva o funcionamento do cérebro em pacientes de transtorno de bipolaridade.
Chachamovich afirma que o consumo de carboidratos não é considerado essencial para que o corpo humano funcione adequadamente, ao contrário das proteínas e gorduras. “Ao restringirmos o consumo de carboidratos, indica-se que se priorize a ingestão de alimentos ricos em proteínas e gorduras de boa qualidade, que são essenciais para a manutenção do bom funcionamento dos processos metabólicos”, afirma.
Assim, serão retirados da dieta cereais, tubérculos e grande parte de leguminosas e frutas. “O que resta são verduras, praticamente todos os legumes, frutas como abacate, coco e açaí sem açúcar, tofu e alimentos de origem animal”, diz Teixeira.
A médica afirma ainda que o bom consumo de vegetais é primordial para que o corpo disponha de grande quantidade de fibras e antioxidantes, que devem ajudar na melhora do sistema digestivo e evitar efeitos colaterais. Essa ingestão também evita processos inflamatórios na circulação, o que deve manter o nível do colesterol e reduzir o risco de doenças cardiovasculares.
“Pacientes veganos podem realizar uma dieta cetogênica adequada, pois utilizarão como fonte proteica o tofu e possivelmente proteínas isoladas. Pacientes onívoros ou ovolactovegetarianos precisam tomar o cuidado para não exagerar nos produtos de origem animal, já que eles são ricos em gorduras saturadas e colesterol, podendo contribuir negativamente para a diversidade da microbiota intestinal”, ressalta Teixeira.
Chachamovich explica que existem pacientes com transtorno de bipolaridade que se incomodam com o uso indiscriminado de medicações psiquiátricas. No entanto, ele alerta que a inclusão da dieta cetogênica no tratamento não anula, necessariamente, o uso de medicamentos. “Os remédios têm um papel importantíssimo e, quando bem utilizados, podem salvar vidas”, diz.
Por outro lado, ele explica que tem sido comum que pacientes busquem por ferramentas terapêuticas que vão além da medicação, como a própria intervenção alimentar. O psiquiatra diz que a dieta cetogênica pode diminuir a quantidade de doses e auxiliar o corpo para “cortar” a medicação mais cedo.
Antes de iniciar a dieta, Chachamovich reforça que é necessário que o paciente passe por uma avaliação criteriosa por um profissional de saúde.
Laura detalha que a adesão dessa estratégia alimentar pode causar desconfortos gastrointestinais como fome, vômitos, refluxo, dor abdominal, constipação e excesso de gordura nas fezes (esteatorreia).
“A dieta também pode alterar níveis de colesterol e triglicerídeos, aumentando o risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares e esteatose hepática. Também é possível o surgimento de cálculos renais, hiperuricemia e letargia”, diz.
A médica adverte que a dieta cetogênica deve ser usada de maneira correta e administrada com cuidado para não causar desequilíbrios metabólicos. Há contraindicações da adesão desta estratégia alimentar para os seguintes pacientes: