Segunda-feira, 26 de Maio de 2025

Crônica D’P: Antologia

2022-10-16 às 15:43

Por Kleber Bordinhão

Meus irmãos e eu nascemos em um galpão enorme e barulhento. Cheirava à cola e óleo de motor. Mal vimos a luz do dia, já fomos encaixotados e levados para nossa primeira morada, no Centro da cidade. Transportados em um caminhão, apertados, plastificados e mudos. Chegamos e um menino nos dispôs em uma longa prateleira. Fiquei apertado entre dois dos meus irmãos e tive a sorte de ser posto de pé. Outros, azarados, ficariam de ponta cabeça até serem comprados.

Na mesma semana, uma moça apressada me tirou da estante e sem nem me folhear me levou para a sua casa. O curioso é que, no instante seguinte em que me faltaram palavras, eu conheci o Aurélio. Era um livro enorme e tinha resposta para tudo, falava coisas que eu não entendia, coisas que estavam muito além das que eu guardava dentro de mim. No curto espaço de tempo em que conversamos dentro da sacola da livraria, eu aprendi muito. Falei que estava ansioso, porque enfim seria lido, e confessei que sequer havia sido aberto. Aurélio disse que a leitura de cabo a rabo de uma obra é superestimada. Deu como exemplo ele próprio: é muito melhor ser consultado com frequência por alguns segundos a ser lido por inteiro e depois abandonado por anos.

Ao chegarmos à casa da moça, ela nos jogou no sofá da sala e foi tomar banho. O lugar era pequeno e deu para ver que, após o banho, ela foi à cozinha, preparou rapidamente algo e veio comer na sala. Segurava o garfo com uma das mãos e com a outra folheava o Aurélio parecendo procurar alguma coisa. Sussurrou algumas vezes a palavra “escafandro” e jogou o livro pesado na mesinha de centro. Terminou a refeição e me levou para o quarto.

A primeira leitura de um livro é algo muito íntimo. O que posso dizer é que, além de inesquecível, foi de uma vez só. Fiquei feliz e orgulhoso, me senti interessante. Mas, ao mesmo tempo, me lembrei das palavras do Aurélio, e o medo de passar o resto dos meus dias empoeirado em um canto qualquer me atormentou.

A estante da moça era modesta, principalmente em relação à da livraria. Ela me acomodou na prateleira mais alta, entre uma biografia e um livro de fotografias. Conheci muitos livros nos meses seguintes. Todos relativizavam meu medo de nunca mais ser lido. Soube que alguns estavam guardados sem nunca terem sido abertos! Outros diziam que era melhor passar os últimos dias ali a terminar tendo as folhas embrulhando qualquer coisa por aí. Repetiam como mantra. Havia também a esperança de ser emprestado. Ter uma nova casa e conhecer novos livros, já que a probabilidade de volta, nessa situação, é quase nula. E assim aconteceu. Em uma noite de festa, música e bebida, eu fui emprestado.

Fui lido inúmeras vezes daquele dia em diante, sempre no regime de empréstimo. Sempre ciente de que nunca mais voltaria ao lar anterior. Voltas que me trouxeram aqui: “Sebo”, mostra o letreiro. Parece um lugar de sobrevida para livros velhos e já cansados dos empréstimos. Olhando ao redor, tenho que concordar: “melhor aqui do que terminar tendo as folhas embrulhando qualquer coisa por aí”. Daqui onde eu estou, tenho uma visão privilegiada que me permite reconhecer o Aurélio mostrando para alguém o significado da palavra “reciclagem”.

Kleber Bordinhão é escritor, autor de livros de poesia e crônica. Instagram: @kleberbordinhao

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #292 Setembro de 2022.