Em entrevista exclusiva, concedida durante a sua passagem por Ponta Grossa, o sociólogo Emir Sader fala sobre a importância do Estado, afirma que o neoliberalismo se baseia na destruição de direitos e reflete sobre o papel de Lula na esquerda continental e mundial
Por Enrique Bayer
Ajudar as pessoas, especialmente os jovens, a compreenderem a natureza da sociedade, explicar quais são as contradições que movem o mundo atual e apontar os objetivos que se colocam nos campos ideológicos em luta: esse é um dos papéis que o sociólogo paulistano Emir Sader, 78, atribuiu a si mesmo.
Em passagem pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e pelo Sindicato dos Metalúrgicos local, no dia 4 de junho, Sader, que conta com extensa bibliografia sobre o Brasil, a América Latina e o papel da esquerda na política do continente, lançou a segunda edição de “Lula e a Esquerda do Século XXI: Neoliberalismo e pós-neoliberalismo no Brasil e na América Latina”.
Sobre a obra, ele explica que o livro não é necessariamente sobre o líder petista, mas sobre o fato de “estarmos vivendo um ano decisivo para o Brasil, em que nós vamos decidir se continuaremos a viver na catástrofe atual ou se reencontraremos a democracia, o desenvolvimento econômico, a distribuição de renda, a prioridade para as políticas sociais, a educação, a saúde e a cultura”.
Na entrevista a seguir, o sociólogo comenta a importância de ainda debater ideologias, como o Brasil chegou ao governo Bolsonaro, a importância de Lula para a rearticulação da esquerda no continente, por que as desigualdades crescem apesar do desenvolvimento do capitalismo e o que considera a “hipocrisia” dos defensores do Estado mínimo.
Muitas pessoas dizem que as “ideologias atrapalham” o desenvolvimento da sociedade. Em mundo que cada vez mais condena as ideologias, por que debater esquerda, direita e ideologia no século 21?
A ideologia expressa o que é a sociedade. Se existe uma expressão política da extrema-direita no Brasil, que veio para ficar, é porque um setor da sociedade se radicalizou à direita. Aquela classe média que votava nos tucanos de repente desistiu. Os tucanos tentaram se fazer presentes nas grandes manifestações pelo impeachment da Dilma e foram rechaçados. Os manifestantes estavam apelando já para a extrema-direita, a qual sempre fora marginal no Brasil até aquele momento, mas que hoje, mesmo com os desgastes do governo, tem apoio significativo de cerca de 30% da população. Uma questão fundamental é que o antipetismo ainda tem raízes na sociedade. Acho que não é mais predominante, mas ainda se ouve na mídia debates que partem para essa desqualificação pela suposta corrupção. Por outro lado, o Bolsonaro não argumenta, não tem partido. A questão é que o bolsonarismo vai ficar.
Então, se é necessário pensar a esquerda no século 21, qual é a importância do Brasil para as esquerdas na América Latina e no mundo, e qual é a importância de Lula para o Brasil, para a América Latina e para o panorama mundial?
O Brasil inaugurou na América Latina o modelo de golpe militar. Depois, de alguma maneira, inaugurou também o golpe institucional, que derrubou Dilma. Tem um elemento aí. O peso do Brasil no continente e no mundo é inegável. O Lula é a liderança com a trajetória mais bem consolidada no tempo e com a maior projeção internacional. Imaginar a vitória de Lula é imaginar um cenário em que se consolide a vitória de vários governos progressistas. Por isso eu acho que é fundamental, a mãe das eleições.
O senhor vem destacando, nas suas falas e nesta obra, a centralidade do que chamou de “capital especulativo” no funcionamento do capitalismo atual. Poderia explicar o que é isso e como chegou-se a esse estágio?
No período histórico anterior ao atual, o eixo do capitalismo eram as grandes corporações multinacionais produtivas. De qualquer maneira, as que necessitavam de um certo grau de qualificação de seus trabalhadores. Mas o capitalismo mudou. O liberalismo, que estava escanteado desde a crise de 1929, que foi unanimemente responsabilizado por aquela crise, reapareceu com essa ideia neoliberal, desqualificando o Estado. Desqualificar o Estado é desqualificar o incentivo à produção, à regulação econômica, é desqualificar as políticas sociais e as empresas públicas. Você coloca no lugar o mercado, e um mercado que responde a uma lógica cruel, que favorece o investimento especulativo. É o mercado que vive de compra e venda de papéis, de caráter especulativo. Hoje, os papéis trocam de mãos, e isso é mais rentável ao capitalismo atual, investir na especulação. Ganha-se mais assim do que fazendo investimento produtivo. Há mais liquidez e menos pagamento de impostos. É um mecanismo cruel que condiciona o capitalismo a transferir recursos do setor produtivo para o setor especulativo. No final do dia, fala-se que a Bolsa de Valores cresceu um certo percentual, mas nesse processo não se gera nenhum bem, nenhum emprego. É papel trocando de mão.
Na crise do capitalismo em 2008, quando a especulação já tinha um papel central, foi o Estado americano que socorreu os bancos. Esse não seria um contrassenso em relação ao discurso neoliberal de Estado mínimo?
Sim. Na pandemia, foi o SUS que nos atendeu, foram os investimentos em universidades públicas que nos ajudaram. Na hora H, é o Estado que funciona. Essa ideia de desqualificação do Estado, que é essencial para os neoliberais, é pouco apegada à realidade. Há ideias malucas, como a de que quem recebe Bolsa-Família [atual Auxílio Brasil] não deveria votar. Mas os neoliberais recebem financiamentos reiterados do Estado. É um argumento cínico, hipócrita, que não se sustenta na realidade. Agora a esquerda deve fazer o balanço, por exemplo, da pandemia, e mostrar que foi o Estado que salvou as vidas. Antes havia uma resistência muito grande à reforma tributária. Hoje é um consenso mundial que os ricos têm que pagar mais, através da intervenção do Estado.
Como explicar Bolsonaro e o que se convencionou chamar de “bolsonarismo”, e quais podem ser as consequências dessa linha política para o Brasil a longo prazo?
Como é que nós chegamos a isso? Isso tudo começou quando o Brasil finalmente aderiu ao modelo neoliberal. Foi uma grande virada na história contemporânea. Ronald Reagan [ex-presidente dos Estados Unidos] anunciou lá atrás um dos aspectos dessa virada ao dizer “o Estado deixou de ser solução e passou a ser problema”. Criminalizando o Estado, ele estava querendo promover a centralidade do mercado, a visão neoliberal do mundo, segundo a qual tudo é mercadoria. Tudo tem preço, tudo se vende, tudo se compra. Essa mercantilização é o objetivo fundamental do neoliberalismo. Mercantilizar significa destruir os direitos das pessoas e jogá-las no mercado. Não promover a educação pública, mas promover a educação como mercadoria. Quem tem dinheiro compra uma educação melhor. Não promover o SUS para promover os planos privados. Essa é a polarização fundamental do nosso tempo. Não é entre estatal e privado. É entre a esfera pública, que é a esfera dos direitos, do cidadão entendido como sujeito de direitos, e a esfera mercantil, que é justamente a mercantilização da sociedade.
Para saber a quantas nós andamos na nossa sociedade, é preciso analisar o quanto está sendo mercantilizado, o quanto avançou a educação privada, mercantil, a saúde mercantil, a mercantilização em geral. É um processo que começou no governo Collor. A década de 1990 foi uma década de retrocessos acentuados no Brasil. Ela promoveu a centralidade dos ajustes fiscais. “Ajuste fiscal”, nesse caso, não significa equilíbrio das contas públicas. Significa tirar recursos das políticas sociais. A inflação foi relativamente controlada – porque retornou –, mas às custas do direito das pessoas, ao custo das políticas sociais. Por isso, hoje, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. A desigualdade é o nosso problema fundamental. Mas esse não é o diagnóstico do neoliberalismo. O diagnóstico do neoliberalismo é que o problema central é a inflação, é o “desequilíbrio” das contas públicas. E ele ataca essa questão através dos ajustes fiscais, que acabam promovendo o que eles chamam de “Estado mínimo”. “Estado mínimo” quer dizer centralidade do mercado. Quando o Estado se retira, ele joga as relações sociais no colo do mercado. É isso que o neoliberalismo tratou de promover nos anos 90, promove hoje e vai continuar promovendo.
Analistas dizem que um dos motivos que levaram Bolsonaro ao poder foi a despolitização do povo. Se a intenção é não repetir o bolsonarismo, como politizar os trabalhadores para garantir a longevidade de um projeto político de bem-estar social?
Primeiro, valorizar a democracia. Bem ou mal, por mais precária que seja, é onde a maioria pode decidir. Segundo, explicar que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Então as políticas sociais têm que ser prioritárias em um país como o nosso, não o ajuste fiscal. Mesmo a inflação vitimiza ainda mais os mais pobres. Então é isso, é um trabalho de politização. O Brasil é o maior produtor agrícola do mundo e uma parte significativa da população não tem o que comer.
Como fortalecer os mecanismos da democracia para garantir maior participação popular nos processos políticos? O que seria essa democracia?
A democratização no Brasil, que aconteceu depois da ditadura, foi esse processo formal, de democracia liberal, mas sem democratizar a sociedade como um todo. É um problema agora também. É importante restabelecer a democracia formal, mas também democratizar as relações sociais, as relações econômicas, democratizar os meios de comunicação… Fazer a democracia não apenas como a democracia liberal.
Considerando que o PT é a “saída à esquerda” neste momento, setores à esquerda do PT fazem a crítica de que, desde que houve a possibilidade real de ganhar uma eleição, o PT apassivou o vocabulário em nome da governabilidade. Isso também não gerou descrédito do partido em relação aos trabalhadores?
É preciso entender que houve uma grande virada no mundo, entre o fim do século passado e o começo deste, à direita. O desaparecimento da União Soviética levou o mundo à hegemonia do imperialismo americano. O capitalismo passou de um modelo industrial para um modelo especulativo, financeiro. O modelo hegemônico de política de Estado deixou de ser o modelo de bem-estar social, agora “o mercado é que se vire”. Isso foi um retrocesso descomunal para a esquerda. É difícil imaginar que vamos sair desse cenário direto para o socialismo. Não, o neoliberalismo é o modelo que mais se generalizou no mundo. Até na China há políticas de mercado. A luta da esquerda hoje, antes de tudo, é para derrotar o neoliberalismo, que é a forma que o capitalismo assumiu agora. Hoje ninguém fala de socialismo como realidade imediata. Mesmo a China bota mais para a frente. É um fenômeno negativo na correlação de forças.
A esquerda tem que descobrir como passar do antineoliberalismo para o anticapitalismo. Eu acho que a esfera pública é o embrião do anticapitalismo. Por isso, é importante universalizar os direitos. Então, quanto mais a esfera pública toma participação na vida social, mais você combate o modelo mercantil. Os governos progressistas da América Latina têm e tiveram alguma coisa disso, fortaleceram os direitos de todos. Houve pleno emprego no governo da Dilma. Mas hoje é isso que está colocado. Ser de esquerda hoje é ser antineoliberal.