Quinta-feira, 25 de Abril de 2024

Enfoque D’P: Exército de uma mulher só

2022-07-17 às 14:42

por Michelle de Geus

No mês de março, comemorou-se o Dia das Mães. Como forma de refletir sobre a maternidade, conheça três mulheres ponta-grossenses que assumiram inteiramente a responsabilidade pela criação dos filhos. Conhecidas como “mães solo”, elas formam no Brasil uma comunidade de 11 milhões de mulheres que criam os pequenos com muito amor, mas também com muita luta

Um antigo provérbio diz que é preciso uma vila inteira para criar uma criança, mas, em alguns casos, basta o exército de uma mulher só. Essas mulheres que, por diversas razões, criam sozinhas os filhos preferem ser chamadas de “mães solo”, em vez de “mães solteiras”, já que estar ou não em um relacionamento não significa necessariamente compartilhar a responsabilidade pela criação dos filhos.

Nos últimos dois anos, o número de crianças registradas apenas com o nome da mãe bateu recorde em Ponta Grossa, aponta levantamento da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). Durante esse período, cerca de 500 bebês tiveram as palavras “pai ausente” impressas na certidão de nascimento, o que representa um a cada dez recém-nascidos. Além disso, não é raro que, ainda nos primeiros anos de vida da criança, o casal se separe e a figura paterna deixe de estar presente.

Ao se verem sozinhas, essas mulheres assumem inteiramente a responsabilidade pela criação dos filhos. Muitas vezes sem contar sequer com suporte financeiro do ex-companheiro, elas se desdobram para arcar com as despesas da casa e suprir as necessidades básicas dos filhos. E ainda enfrentam a difícil missão de oferecer suporte emocional e psicológico aos pequenos.

O caso de Doris

“Não é nada fácil. Ainda sou totalmente insegura e sei que tomo decisões precipitadas ou erradas. Acho que erro mais do que acerto”, afirma a professora Doris Oliveira de Lima. Ela é mãe solo da Érika (13) e do Pedro Bernardo (4), filhos de pais diferentes. Embora estivesse casada nas duas vezes que engravidou, após a separação, veio a distância e a falta de apoio na criação dos filhos. “Confesso que já pensei em sumir e abandonar tudo, mas são os meus filhos que me dão forças para não desistir e lutar para melhorar de vida”, revela. “Na maioria das vezes, o fardo é bem pesado. Eu estou exausta e sem forças para cuidar de mim mesma”, desabafa.

Doris conta que as duas gestações foram tranquilas e que o grande desafio é educar e cuidar das crianças sozinha. “Eu sempre achei que a presença do pai ensina à criança o princípio de autoridade, e sem a figura paterna esse aprendizado fica um pouco incompleto. A autoridade e o zelo do pai fazem falta até nas pequenas coisas”, opina. Segundo ela, os filhos convivem pouco o pai e, em ambos os casos, a participação é mais financeira do que educativa. “Resolver os problemas do dia a dia sozinha é muito difícil. Os conflitos, as incertezas e as dificuldades que eles enfrentam ficam todos para mim. Às vezes, eu estou tão cansada que deixo de dar bronca em momentos importantes, por não querer ser a peça ruim da história”, confessa.

A professora Doris Oliveira de Lima é mãe solo da Érika (13) e do Pedro Bernardo (4): “São os meus filhos que me dão forças para não desistir e lutar para melhorar de vida”

Na falta de um pai presente, a professora conta com a ajuda da família para dar conta de tudo. Ela comenta que a rotina da casa é agitada, até mesmo nos finais de semana. “De manhã, saímos todos. Eu vou para o trabalho, a minha filha para a aula e o meu filho para a creche. Durante a tarde, quando não está nos treinos de vôlei e handebol, a mais velha me ajuda com as atividades da casa. À noite, quando eu chego em casa, é uma correria para fazer janta, dar banho, estudar e se preparar para o outro dia”, relata. “No final de semana, nós vamos à igreja e depois eu aproveito para arrumar a casa e lavar roupa. O meu filho fica a maior parte do tempo brincando e a minha filha sai conversar com os amigos. Eu só descanso quando não estou bem”, aponta.

Entre todas as dificuldades que enfrenta no dia a dia, Doris destaca um momento em especial: as brigas. “O mais difícil é resolver os conflitos entre os irmãos e fazer com que eles obedeçam quando eu peço. Eles criaram uma autonomia que, às vezes, é confundida com desobediência”, comenta. Para a professora, esse é um dos reflexos da educação sem um pai presente. “Em algumas situações, eu me arrependo dos divórcios. Talvez, se tivesse tido uma estrutura familiar, hoje as coisas seriam diferentes. Na verdade, as pessoas deveriam ser ensinadas a se relacionar”, avalia.

O caso de Verônica

Em 2004, a jornalista Verônica da Silva iniciou um novo relacionamento e, quatro meses depois, descobriu que estava grávida do primeiro filho, Luís Gustavo (16). “Foi um susto, claro. Eu tinha acabado de entrar na faculdade, estava em uma mudança de vida e tive que assumir esse novo compromisso”, lembra. Do relacionamento ainda viriam outros dois filhos, Maria Gabriela (15) e Ana Laura (12). “Eu continuei a faculdade e, na época, fazia estágio. Era uma rotina muito intensa. O meu ex-marido nunca foi omisso e me ajudava bastante com essa questão de cuidar da casa e das crianças. Era um pai extremamente amoroso e carinhoso”, recorda.

As coisas começaram a mudar em 2013, quando o casal decidiu se separar. “Vai fazer nove anos que eu estou separada e, depois disso, ele parou totalmente de me ajudar a cuidar. Foi um laço cortado abruptamente”, conta Verônica, acrescentando que, durante muito tempo, não teve apoio psicológico ou financeiro do ex-marido, que chegou a ficar mais de um ano sem visitar os filhos. “Ele cortou totalmente o contato e as crianças não entendiam o que estava acontecendo. O meu filho, na época, tinha oito anos e a mais nova apenas quatro anos. Eles precisavam do pai presente e estavam acostumados com esse convívio”, relata.

“Eu tento suprir tudo o que eu posso para que eles não sintam tanto essa lacuna que a separação causou”, conta a jornalista Verônica da Silva, mãe solo do Luís Gustavo (16), Maria Gabriela (15) e Ana Laura (12)

Quando Luís Gustavo fez nove anos, pediu para ir morar na casa dos tios, que não puderam ter filhos. “A minha irmã e o meu cunhado sempre foram apaixonados por ele e vice-versa. Eu diria que foi uma coisa espiritual que aconteceu. Parece que a criança que ela perdeu 19 anos atrás veio no meu filho”, aponta. Depois de muito sofrimento, Verônica decidiu permitir a mudança. “Foi bem doloroso para mim, porque nenhuma mãe quer ficar longe dos filhos. Por outro lado, o Luís Gustavo sentia muita falta de uma presença paterna na vida dele”, pondera. Durante mais de um ano, ela permaneceu morando no Jardim Carvalho e a criança em Uvaranas, com os tios. “Faz quatro anos que eles vieram morar na casa em frente à minha e tudo acabou se resolvendo”, explica.

Verônica destaca que teve de reestruturar toda a sua vida para atender às necessidades dos filhos, que passaram a ser mais ainda prioridade. “Eu tento suprir tudo o que eu posso para que eles não sintam tanto essa lacuna que a separação causou”, diz. Atualmente, ela recebe uma pensão do ex-marido e as crianças passaram a conviver um pouco mais com o pai. “Acho que ele se conscientizou de que os filhos têm todo o direito de ter a presença paterna, mesmo que seja de vez em quando. Digamos que, do zero, a gente está no três ou quatro”, avalia, lamentando que não seja o convívio ideal que as crianças merecem e precisam.

E o caso de Luciana

Aos 20 anos de idade, Luciana Cristina de Oliveira descobriu uma gravidez não planejada e, após pressão dos familiares, o pai assumiu a criança e eles se casaram. “Quando eu fiz o ultrassom e descobri que era uma menina, ele não ficou satisfeito, porque queria um menino. Era muito amor, muita atenção, muita dedicação e muito carinho da minha parte e da minha família, mas ele não aceitava e se casou comigo apenas por obrigação”, lembra. Daquele casamento ainda nasceriam mais dois filhos, Gustavo (22) e Alana (19).

Ainda muito criança, a filha mais velha, Luana (28), começou a dar sinais de ser transexual. “Dos três anos dela para cá, eu e a minha família descobrimos que ela não queria ser menina e, sim, um menino. Na pré-escola, as atividades e brincadeiras dela eram sempre de menino”, conta. Hoje, aos 28 anos, Luana fez a transformação e mudou o nome para Evan. “O nosso divórcio também aconteceu porque o meu ex-marido não aceitava que um dia ela seria homem, que era o que ela sempre falava. Com muito acompanhamento e amor, os irmãos pequenos amando e defendendo a irmã, ela assumiu a postura de Evan, trocou toda a documentação e está muito feliz”, conta, acrescentando que apoia incondicionalmente a decisão.

Luciana Cristina de Oliveira é mãe solo de Evan (28), Gustavo (22) e Alana (19): “Desde o momento que eu engravidei, sabia que seria mãe solo e que ia ter que dar conta de tudo”

O filho mais velho tinha dez anos e a filha mais nova apenas um quando Luciana assumiu o papel de mãe solo. “Desde o momento que eu engravidei, sabia que seria mãe solo e que ia ter que dar conta de tudo. Eu ficava com medo, mas me agarrava muito em Deus e sabia que, se eu estava sozinha com os três, é porque Ele tinha um propósito para mim”, defende. Para cuidar das crianças, Luciana contou com o apoio da própria família. “Eu e a minha mãe nos desdobramos muito para cuidar deles, explicando todas as fases da vida deles e resolvendo tudo de maneira clara e transparente. Até hoje é assim. Foi muito difícil, mas nós conseguimos”, garante. Ela revela ainda que teve de trabalhar muito, incluindo aos finais de semana, e aceitou vários tipos de serviços para suprir todas as necessidades financeiras.

Luciana acredita que o apoio paterno seria importante na vida dos três, mas destaca que faz tudo o que pode para suprir essa necessidade. “Eles nunca vão falar para mim, e eu também não pergunto para evitar de mexer nessa ferida, mas acredito que, lá no fundo, eles sentem falta de ter um pai presente. Independente disso, o que nunca faltou para eles foi muito amor, muito carinho e muita dedicação”, garante. “São as minhas joias preciosas e eu amo os três de paixão. Se eu tivesse que passar tudo de novo para ter os três do jeito que eles são, pode ter certeza que eu passaria e estaria presente a todo instante na vida deles. Sou como uma leoa defendo os filhotes”, brinca.

Doris, Verônica e Luciana são três exemplos de mães solo que assumiram inteiramente a responsabilidade pela criação dos filhos. As suas histórias têm em comum não só as dificuldades financeiras e o esforço dobrado para cuidar da casa e das crianças, mas também a certeza de que fariam tudo de novo.

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #290 Junho de 2022.