Quinta-feira, 25 de Abril de 2024

Enfoque D’P: Sobreviventes da COVID em PG

2022-04-03 às 10:36

por Enrique Bayer

Apesar do alto número de mortes, a pandemia também traz histórias de redenção. Três ponta-grossenses que enfrentaram todo o traumático processo da doença falam sobre uma experiência que mudou a vida deles. E que pode mudar a vida de outros também

Um vírus que a humanidade até hoje não conhece totalmente: esse é o SARS-CoV-2, causador da doença infecciosa conhecida como COVID-19. Desde 17 de novembro de 2019, quando as autoridades chinesas comunicaram a primeira contaminação, ocorrida na província de Wuhan, já foram registrados mais de 430 milhões de casos em todo o mundo, com cerca de 6 milhões de pessoas mortas. Apesar do expressivo número de óbitos, a pandemia, como todo cenário de tragédia, também traz histórias de redenção. Pessoas que enfrentaram todo o traumático processo da doença (sintomas, internamento, coma induzido, intubação, sequelas, recuperação) e que estiveram à beira da morte passaram por uma experiência que pode mudar vidas. A delas e a dos outros.

Em Ponta Grossa – onde já foram registrados mais de 1.500 mortes pela doença até o fechamento desta edição –, a vida de muitas pessoas está marcada por um “antes da COVID” e um “depois da COVID”. Esse é o caso, por exemplo, da enfermeira Terezinha Pelinski da Silveira. Primeira vacinada contra a COVID-19 na cidade, Terezinha foi coordenadora da implementação do espaço exclusivo para o tratamento da doença no Hospital Universitário da Universidade Estadual de Ponta Grossa (HU-UEPG), em abril de 2020.

Ela relata que os primeiros sintomas, que se manifestaram em julho daquele ano, não pareciam similares a um quadro de COVID. “Passei o final de semana mal e, na segunda-feira, fui consultar um médico. Ele achou que fosse intolerância à lactose, me deu remédios e eu voltei para casa”, relembra. No mesmo dia, o quadro evoluiu e Terezinha procurou outro médico, que constatou a baixa saturação do oxigênio e, depois de exames complementares, deu o diagnóstico: COVID. Foram 24 dias de internamento – 15 deles em leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Ela conta que não tem lembrança dos dias em que estava intubada. “Parece uma noite de sono”, compara.

No quarto do hospital, que faz parte de sua rotina, uma das coisas que fizeram falta para ela foi a privacidade. “O espaço que lhe sobra é só o espaço do leito onde você está, e as pessoas entram no quarto o dia todo. Você não consegue ser você mesmo”, comenta. A recuperação da enfermeira, que trabalha no HU-UEPG desde a sua inauguração, em 2009, não foi fácil. A fisioterapia entrou na rotina e alguns problemas de fala ainda persistem. Além disso, a mastigação também está dando trabalhando. “Eu passei a me engasgar com mais facilidade, inclusive com bolos alimentares menores. Tive que mudar algumas coisas na minha alimentação”, relata.

Terezinha Pelinski da Silveira: “Todos nós, que passamos pela COVID, mudamos bastante. A gente tem que aproveitar as oportunidades de estar presente e fazer as pessoas felizes”

Como efeito colateral da doença, Terezinha também foi acometida de depressão, condição da qual ainda está se tratando. O transtorno pode estar associado à deterioração neurológica, uma das consequências do vírus. Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) realizaram um estudo com pacientes que se recuperaram de formas moderadas e graves da COVID e observaram uma relação entre o vírus, deficits cognitivos e transtornos psíquicos. Mais da metade (51,1%) dos 425 participantes relataram declínio da memória após a infecção. No mesmo grupo, 15,5% foram diagnosticados com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) e 8% tiveram o diagnóstico de depressão.

O retorno ao trabalho, em outubro de 2020, reanimou a enfermeira, que continua trabalhando com os pacientes acometidos pela COVID-19. “Eu gosto muito de estar no hospital e agora eu tenho até um olhar diferente em relação aos pacientes. Estou mais atenciosa também com a equipe. Sensibilizo-me mais com as pessoas”, revela. “Todos nós, que passamos pela COVID, mudamos bastante. A gente tem que aproveitar as oportunidades de estar presente e fazer as pessoas felizes”, acrescenta.

 

            “Respeitem o próximo”

Se 2022 pode ser o último ano da pandemia, 2020 e 2021 foram anos de recordes negativos. Em novembro de 2020, segundo levantamento do Conselho Internacional de Enfermagem (ICN, na sigla em inglês), o Brasil respondia por um terço do total de mortes de enfermeiros no mundo: dos 1.500 profissionais vitimados pela COVID-19 em 44 países, 500 eram brasileiros. Já em 17 de março do ano seguinte, o Brasil registrou 90.830 casos de COVID – o maior número registrado no mundo até então. Uma das vítimas desse quadro dramático, naquele ano, foi o enfermeiro Evil Merodaque, que também trabalha no HU-UEPG e acredita ter contraído a doença durante um dia de trabalho.

Evil conta que, durante uma das tantas intubações que fez, chegou a ficar mais de uma hora e meia em um quarto. “Lançamos mão de todas as técnicas para intubar o paciente e, nesse processo, ele acabou aerolizando”, explica. A aerolização acontece quando as partículas do vírus ficam suspensas no ar. “Mesmo com a máscara N-95, eu acabei inalando uma grande quantidade de vírus”, revela.

No caso de Evil, os sintomas iniciais foram parecidos com os de uma gripe, o que, na época, ele achou que pudesse ser sinusite. “Eu sofro de sinusite crônica e praticamente todo ano tenho agudização desse quadro”, conta. No entanto, após cinco dias, o quadro já era grave. A porcentagem de oxigênio no sangue chegara a 68%, quando o ideal é que esteja acima de 94%. Apesar da gravidade da situação, Evil afirma que ficou tranquilo. “Eu tive hipoxemia, então pode ser que o meu julgamento sobre o meu próprio estado de saúde e as consequências dele estivesse afetado”, pondera.

O tratamento envolveu o uso de analgésicos para os sintomas iniciais, 21 dias de internação – 16 em leito de UTI – em junho e um período de fisioterapia após o internamento. “Eu fiz um mês e meio de fisioterapia com uma equipe da própria UEPG. Isso me ajudou muito e até surpreendeu toda a equipe envolvida, inclusive os colegas do hospital”, comenta.

Evil Merodaque: “Se me perguntavam se eu estava bem, eu chorava. Sentia que o psicológico ficava cada vez mais abalado. Passei a ter medos que eu não tinha antes”

Assim como Terezinha, Evil relata que ficou abalado psicologicamente por causa da doença. “Se me perguntavam se eu estava bem, eu chorava. Eu já tinha voltado a trabalhar há dois meses e sentia que o psicológico ficava cada vez mais abalado. Passei a ter medos que eu não tinha antes. A doença não é só uma disfunção orgânica”, observa.

Além do transtorno psicológico, Evil relata prejuízo na visão. Assim como no caso da depressão, esse também é um dos efeitos colaterais já conhecidos do pós-COVID. Um estudo da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), publicado no periódico britânico The Lancet, concluiu que o vírus pode causar lesões na retina. “A minha memória também ficou prejudicada. Tudo que eu precisava fazer, eu anotava. Mas agora estou recuperado”, diz.

Para quem insiste em negar a gravidade da doença, Evil faz um apelo. “Respeitem o próximo. A partir do momento que você está se colocando em risco, não é só você que vai sofrer se contrair o vírus. Tomem as vacinas e sejam prudentes. A única maneira de vencer o vírus é com prevenção e vacina”, orienta.

 

Entre o milagre e o “inferno na Terra”

“Quando a minha esposa me viu pela primeira vez depois da internação, não me reconheceu.” A frase é do professor Rauli Gross Junior, chefe do gabinete da Reitoria da UEPG. Entre tratamento hospitalar e os cuidados em casa, Rauli ficou sete meses acamado, tempo em que chegou a pesar míseros 38 quilos. Agora recuperado, ele celebra o simples fato de conseguir tomar um copo de água sozinho.

Em 19 de março do ano passado, após 15 dias de sintomas, Rauli foi internado. O professor conta que, antes do internamento, ganhara um oxímetro de um casal de amigos, um presente que provavelmente salvou a sua vida. Com o aparelho marcando 80% de saturação do oxigênio, a esposa decidiu que era hora de ir ao hospital. Lá, uma tomografia revelou que Rauli já estava com 50% do pulmão comprometido pela doença. Três dias depois, outra tomografia revelou um quadro ainda pior: 85% do pulmão comprometido.

Ele não se lembra dos detalhes e conta que só sabe do quadro porque leu o próprio prontuário. Um dos momentos dramáticos em sua trajetória envolve o que ele considera um milagre. “Em uma troca de turno, uma enfermeira resolveu fazer uma oração por mim e eu abri o olho no meio da oração. Todos os médicos com quem eu converso dizem: ‘Não era para você estar aqui, a gente já tinha jogado a toalha’”. Das 18 pessoas que compartilharam a UTI com o professor, 15 morreram.

O quadro dramático fez com que o professor perdesse as memórias do período de internamento, mas, curiosamente, Rauli ainda se lembra dos sonhos. “Pelo menos os sonhos foram bons. Eu viajei pela Europa, conheci a história da minha família… Eu me lembro de todos os sonhos que eu tive”, relata.

Após recobrar a consciência, o professor vivenciou um período que ele classifica como nada menos que um “inferno na Terra”. “Eu só conseguia mexer a cabeça, não tinha voz, tinha a dor da escara [tipo de úlcera], que só foi fechada com tratamento a laser depois de cinco meses, e as veias não apareciam para os enfermeiros fazerem os acessos. Comia via sonda e dependia de outras pessoas para tudo”, descreve.

Em 15 de maio, a equipe médica mandou Rauli para casa, apesar da gravidade do quadro. Os cuidados incluíam o uso de um cilindro de oxigênio. Os dez metros cúbicos de cada um dos cilindros duravam, em média, dois dias. Foram quase quatro meses usando esse tipo de equipamento.

Rauli Gross Junior: “Todos os médicos com quem eu converso dizem: ‘Não era para você estar aqui, a gente já tinha jogado a toalha’”

Agosto marcou o início da recuperação. Nesse período, ele voltou a dar os primeiros passos com o auxílio de um fisioterapeuta que se tornou um grande amigo. Em outubro, após superar a Síndrome do Pânico e o Estresse Pós-Traumático com os quais foi diagnosticado, Rauli voltou a trabalhar. “Foi a melhor coisa que me aconteceu. Eu podia ter usado mais um atestado e continuar afastado, mas estava com muita vontade de trabalhar”, relembra.

A receptividade dos colegas e amigos fez a recuperação evoluir “de progressão geométrica para progressão aritmética”. “Muita gente que me encontra agora diz que nem parece que eu tive COVID”, afirma. Mas as sequelas permanecem: Rauli ainda sente falta de tato e tem a mobilidade da mão direita reduzida. Além disso, parte da perna do mesmo lado do corpo parece anestesiada e a força física ainda não está totalmente recuperada.

Muita coisa ainda está longe do ideal, mas muita coisa melhorou. “O que eu aprendi é não brigar com o tempo. Coisas que eu não posso fazer hoje, eu termino amanhã. E aí, às vezes, o trabalho fica até melhor. Temos que viver o dia a dia, compartilhar os momentos e dividir responsabilidades. Tudo é possível de ser superado”, conclui.

 

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #289 Março/Abril de 2022.