O historiador Luís Fernando Cerri abordou a influência que a ideologia dominante em regimes totalitários exerceu sobre a política e a sociedade ao longo do século XX e os reflexos que ela traz até hoje, Em entrevista ao programa Manhã Total, apresentado por João Barbiero, na Rádio Lagoa Dourada FM (105,9 para Ponta Grossa e região e 90,9 para Telêmaco Borba), nesta terça (11).
“Tivemos um fenômeno, no século XX, chamado fascismo, que começou na Itália, mas, de certa forma, ele se relaciona com uma característica humana, que é o de querer ter domínio e supremacia sobre outros, de forma total. Isso está presente na história humana como um todo e, agora, no século XX, ganhou esse formato que chamamos de fascismo”, explica o docente do Departamento de História da UEPG.
Da Itália das primeiras décadas do século passado, o fascismo se alastrou para a Alemanha e causou a Segunda Guerra Mundial. “Podemos falar que em torno de 50 milhões de pessoas morreram por conta dessa ideologia. Fala-se entre 50 e 100 milhões de pessoas que morreram, de todos os países, por conta dos combates, dos campos de concentração e das consequências da guerra, como fome e doenças”, detalha.
Conforme Cerri, a Segunda Guerra Mundial resulta, basicamente, do avanço de regimes totalitários como o fascismo e da confrontação de grandes potências, em função da disputa que o fascismo tornou desequilibrada. “Cada potência tinha sua área de influência e a Alemanha e a Itália começaram a expandir essas áreas e entrar na área de outras potências, o que desfez o equilíbrio e levou o mundo à guerra”, comenta.
O aspecto mais marcante do fascismo é ser baseado no “extremo nacionalismo”. “O nacionalismo é saudável e importante para tudo. Acabamos de comemorar os 200 anos da Independência do Brasil e o nacionalismo nos permitiu que nos construíssemos como nação nesses 200 anos. O nacionalismo é uma coisa boa, mas o nacionalismo extremado, necessariamente, leva à guerra, contra outro país ou uma espécie de guerra interna”, destaca.
Nessa guerra interna do nacionalismo exacerbado, surgem aqueles que querem legitimar, de forma exclusiva e excludente, suas nacionalidades e negar a do outro, como se dissesse, por exemplo, que só ela é brasileira e uma pessoa com características diversas às dele, não. “Vai acabar querendo, de algum jeito, destruir o outro. Quando tiver muito poder, vai destruir o outro. O que o fascismo quer, no final das contas, é conseguir poder para o fascista, para o líder, para o chefe que está levando essa ideologia adiante. O que ele quer é poder e, para isso, não vai hesitar em destruir pessoas, inclusive as que apoiam o próprio fascismo”, ressalta.
O nazismo seria, de acordo com o Cerri, o primeiro “filhote” do fascismo e acaba se tornando uma expressão mais grave, porque acrescentou a questão racial – ao pregar a supremacia da raça ariana. “O fascismo é extremamente nacionalista, extremamente autoritário, pensado em torno de um partido único – ou seja, qualquer outro partido é uma traição ao país. Uma perspectiva expansionista e uma hierarquia muito rígida da sociedade: quem manda é o homem; depois, a mulher tem que obedecer; depois, o pobre; se for permitido, as pessoas de outras raças. Uma hierarquia muito forte, que nega completamente a igualdade, qualquer possibilidade de igualdade”, observa.
Segundo o professor, o nazismo introduzir um componente que não era tão forte no fascismo italiano: a ideia de que existe um inimigo comum, que levou o país a tragédia e que precisa ser eliminado. Esse “inimigo comum”, em princípio, eram os comunistas. Conforme Cerri, logo as pessoas aproveitaram uma ideia antissemita, que já persistia na Europa há séculos, e transformou o judeu nesse grande “inimigo comum”, ao atribuir a ele a culpa da decadência alemã.
“[O nazismo] aproveitou essa ideia de ser contra o judeu para dizer que a grande culpa da decadência e dos problemas que os alemães encontravam eram dos comunistas, dos homossexuais, dos ciganos, mas, principalmente, dos judeus”, explica.
Esse “inimigo comum” comunista era, basicamente, qualquer pessoa que seguisse as ideias de Karl Marx (1818-1883), que junto a vários outros socialistas, propunha a igualdade e de que os trabalhadores deveriam assumir os meios de produção e o poder, tendo o direito à riqueza. “Perceba que é bem o contrário do fascismo, porque o fascismo é fortemente nacionalista. O socialismo, o marxismo, é internacionalista: a luta dos trabalhadores é a mesma em todo lugar”, compara.
Cerri opina que o modelo comunista, do jeito clássico, jamais seria aceito no Brasil e, nem mesmo, fora dele. “Se o modelo for a União Soviética, nem a Rússia aceita. Ninguém mais aceita aquele modelo”, diz. O historiador analisa que o regime socialista soviético foi aceito no início do século XX – e durou até a dissolução da União Soviética, em 1991 – porque havia uma “grande frustração com a democracia e com o liberalismo”. “Temos que lembrar que eles estavam saindo da crise de 1929, que levou a muita miséria. As pessoas falavam ‘esse negócio de democracia e de liberalismo econômico não funciona, temos que ir para o autoritarismo'”, complementa.
O comunismo, segundo o historiador, seria uma alternativa econômica igualitária que, para se implantar, passa por uma ditadura. “É possível que a tendência comunista leve a um extremismo autoritário de esquerda. Ele tem essa aproximação com o fascismo, que também é autoritário. A grande diferença é que o comunismo é internacionalista e não é hierárquico, é igualitário. Para se ter uma ideia, a primeira mulher astronauta do mundo foi da União Soviética, nos anos 1960. Nos Estados Unidos, foi só nos anos 1980”, diferencia.
Cerri aponta que os EUA não se baseia tanto na ideia de igualitarismo, tanto que o ideal do sonho americano inclui a figura do “loser“, o perdedor, pois alguém precisaria sempre perder para outro vencer. “É aquela competição entre o cara que vai conseguir vencer na vida e ser rico e o outro, que vai perder e ser pobre, e que bom que ele se tornou rico, porque isso significa que ele é melhor que os outros”, explica o professor, sobre a exacerbação da meritocracia entre os americanos. Existe, aí, uma hierarquização a partir do dinheiro, o que caracteriza a ideologia capitalista.
No século XX, uma associação entre o capitalismo e o comunismo terminou por derrotar o fascismo na Segunda Guerra Mundial. “Para termos uma ideia de quão extremo é o fascismo, o que tornou possível sua derrota foi a aliança dos países comunistas com os países capitalistas”, diz.
Elitismo classista
Quanto à exaltação das diferenças econômicas, como num vídeo em que estudantes de Medicina provocam os de outros cursos, num evento esportivo, Cerri aponta que o elitismo classista na sociedade brasileira é reflexo do fato que, dos nossos 522 anos de história, 388 foram sob regime escravista. “Ou seja, uma sociedade que era baseada na ideia de que existiam pessoas que eram melhores e outras, que eram humanamente inferiores a ponto de que elas podiam ser escravizadas”, explica.
De acordo com o historiador, “ainda estamos nos livrando desse pensamento escravista”, que perdurou durante quase quatro quintos de nossa história. “O igualitarismo é usado para esconder o fato de que somos uma sociedade extremamente racista e classista. As pessoas são muito valorizadas não pelo que elas são, mas pelo quanto elas têm. Às vezes, não interessa se a pessoa é inteligente, é talentosa, se é uma boa pessoa, se é caridosa. Não interessa nada do caráter. Interessa se ela tem dinheiro. É um tipo de preconceito de classe, uma ideia baseada na hierarquia de classe social”, ressalta.
Essa situação classista, de castas, de não querer que o pobre tenha ascensão social, não é, em si, fascismo, segundo o docente. Porém, é alimento para o fascismo. “Qualquer situação em que começamos a ter extremismo, aquilo vai florescer. Tenho uma condição que não é suficiente para eu falar que é fascismo, mas é uma condição necessária: extrema hierarquização da sociedade, rigidez na hierarquia da sociedade”, analisa.
Cerri indica que há uma diferença, inclusive, entre o comportamento em público e a opinião individual no ambiente privado. “No espaço público, eu dependo dos outros, desde o mais humilde até a pessoa mais elevada, digamos assim, na sociedade. No espaço privado, da família, essa ideologia, essa mentalidade escravista faz com que muitas pessoas só se sintam pessoas se elas estiverem acima de outras e, aí, você passa a ter esse tipo de confrontação. A pessoa se sente extremamente incomodada quando o pobre sobe porque, se o pobre subiu, ele não é mais o que ele era. Gera quase um problema de identidade”, pondera.
O sociólogo Florestan Fernandes, que foi orientador do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na USP, em seu livro “O Negro no Mundo dos Brancos”, publicado na década de 1950, já apontava que nosso país é feito para que tudo favoreça quem é branco e homem, cita o historiador. “Como corrigimos isso? Porque somos um país em que tudo dá certo para quem é homem, branco e hetero. Quem tem o mínimo de sensibilidade humana olha em volta e pensa: poxa, não dá para ser assim, porque estamos desperdiçando talentos”, analisa.
Quando uma política que visa à igualdade, como as cotas em universidades, incomoda e enfurece um grupo de pessoas privilegiadas – que não se reconhece como tal – cria espaço para atitudes preconceituosas e as pessoas começam a lembrar que existiu uma ideologia que preconizava a existência de uma hierarquia social, com cada um no seu lugar, num regime que se alguém tentasse sair, deveria morrer.
“A pessoa olha e fala assim: ‘isso poderia ser uma alternativa para a gente e poderia ser melhor que a democracia, melhor que a igualdade. As pessoas começam, infelizmente, a seguir por esse caminho, que é destruidor. O fascismo produz destruição. Ele nunca conseguiu edificar nada por muito tempo, sempre destruiu. O fascismo é filho do extremismo”, avalia.
Cerri afirma, como historiador e como cidadão, que tem a obrigação de dizer, até por respeito à verdade que a ciência busca, que temos um presidente da República que é um extremista de direita. “O solo para o extremismo frutificar está colocado. O grande desafio é como fazemos para que possamos ter um processo democrático que não gere o contrário da democracia”, diz.
Confrontado se não haveria extremismo de esquerda no Brasil, o professor questiona que força o extremista de esquerda teria hoje. “Praticamente nenhuma. Vamos procurar em rede social extremista de esquerda: você não encontra, é muito difícil encontrar. Não é porque ele não exista. Existe, inclusive, quem queira ir para a luta armada, matar, para construir a sua ideologia política, mas ele não tem dinheiro, não tem apoio e ninguém leva a sério. A própria esquerda olha para essa pessoas e fala que não querem saber disso”, comenta.
O extremismo de direita, por outro lado, tem dinheiro e apoio de empresários que, por alguma razão, “por um cochilo de sua própria racionalidade”, resolve investir dinheiro nesse tipo de coisa, que a acaba disseminando de forma muito ampla. “Isso acaba sendo um ativo, um recurso, para muitos políticos oportunistas que falam: ‘opa, esse tipo de coisa está crescendo; se eu falar isso, vou ganhar voto; se eu correr atrás de professor e disser que ele está doutrinando, vou ganhar voto’. Ele não está nem ligando para a educação, ele quer voto”, acrescenta Cerri.
Para o professor, nem tudo no extremismo é movido pelo ódio, mas pelo medo. “O que dá mais força, mais visualização, é medo e ódio. Quem está usando medo e ódio para ganhar força na Internet e na política?”, questiona.
Cerri pontua que quem é contra o direito de propriedade é a extrema-esquerda, que hoje se encontra absolutamente isolada. “A gente brinca que, se for fazer um Congresso da extrema-esquerda, cabe numa Kombi. Não é um perigo real”, diz.
Em seus 51 anos de vida, o historiador aponta que só viu duas ocasiões em que se retirou o direito de propriedade das pessoas: a primeira, quando o Plano Collor, que sequestrou a poupança das pessoas e a outra é quando a pessoa se endivida e o banco toma suas posses.
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Confira a entrevista de Luís Fernando Cerri na íntegra: