O programa Manhã Total, apresentado por João Barbiero, na Rádio Lagoa Dourada FM (105,9 para Ponta Grossa e região e 90,9 para Telêmaco Borba), recebeu nesta quarta (31), o psiquiatra Tarcísio Fanha Dornelles, que explicou o que diferencia a bipolaridade de outros transtornos mentais e desmistificou alguns estigmas que persistem em torno do tema.
“Como o transtorno da bipolaridade é um conceito ‘popular’, nem sempre o que as pessoas entendem por bipolar ou por mania é o que nós, da Psiquiatria, entendemos por bipolar e mania”, comenta Dr. Tarcísio.
O psiquiatra explica que o Transtorno Afetivo Bipolar pode se manifestar de dois tipos. O tipo 1 se caracteriza pela ocorrência de episódios maníacos. O tipo 2 apresenta episódios hipomaníacos e depressivos.
Segundo o Dr. Tarcísio, diferentemente do senso comum, mania não é o costume de fazer as coisas de determina jeito, como a “mania de limpeza”, por exemplo. A psiquiatria considera a mania um período de pelo menos sete dias em que a pessoa manifesta sua energia ampliada.
“Como se fosse o contrário da depressão, bem basicamente. A pessoa tem aumento da atividade dirigida – ou seja, está fazendo muitas coisas ao mesmo tempo; uma redução na necessidade de sono – não dorme e não fica cansada; uma exposição maior a riscos – como atividades perigosas ou atividade sexual de risco, gastos exagerados, uma sensação de onipotência”, detalha o especialista.
Nesse sentido, ocorre a chamada “quebra de funcionalidade”, isto é, a pessoa se comporta de modo diferente do habitual: ela faz coisas que costumeiramente não faria ou deixa de praticar coisas que fazia em seu cotidiano. “É o período em que a pessoa fica além do normal. São pelo menos sete dias, mas ela pode ficar anos nesse estado”, alerta.
Segundo o psiquiatra, a ocorrência de um episódio maníaco já é o suficiente para se diagnosticar o transtorno afetivo bipolar (tipo 1). “Quando temos a hipomania, seria um quadro de mania menos grave. Aí precisamos de um episódio depressivo, separado também”, comenta Dr. Tarcísio, sobre o tipo 2.
A principal dificuldade no diagnóstico reside no fato de que o senso comum confunde a instabilidade de humor com o episódio maníaco. “A mania precisa ter pelo menos sete dias. A pessoa vai apresentar esses episódios poucas vezes ao ano. Poucas vezes na vida, às vezes”, diferencia.
Segundo o psiquiatra, os episódios de mania não são de alternância constante com o habitual, como se existisse um botão de liga-desliga. Essa alternância é característica da instabilidade do humor, é característica desse outro transtorno, facilmente confundido com bipolaridade.
Gatilhos
A mudança de comportamento é rápida, mas não frequente, pois ocorre poucas vezes ao longo da vida. “Pode ter fatores que propiciam isso. Não temos certeza a respeito de quais são esses fatores. Mas podemos ter estressores, privação de sono, medicações e o uso de drogas. Talvez esse seja o mais frequente, o mais importante para comentarmos””, resume.
Diferença entre bipolar e borderline
Diferente do bipolar, o transtorno borderline é limítrofe ou com instabilidade emocional, que é um padrão da personalidade do indivíduo. Nesses casos, a variação de humor, que ocorre ao longo do dia, acompanha a vida do paciente sem que haja a quebra funcional.
O borderline, segundo Dr. Tarcísio, é um transtorno com instabilidade emocional, relações interpessoais complicadas, auto-agressão, sentimento crônico de vazio e esforço desmedido para evitar o abandono. “Isso começa a se manifestar na adolescência e acompanha a vida do indivíduo, melhorando ou piorando. O prognóstico geral é que, conforme a pessoa vá aumentando de idade, vá amadurecendo, envelhecendo, isso melhore, na maior parte dos casos”, diz.
Além dessas características, o borderline pode manifestar o que a psiquiatria chama de “pseudoalucinações”. “São algumas vivências, que não chegam a ser psicóticas, como ouvir vozes, é uma coisa bem mais específica, entre outros fatores. Nesse caso, é importante que passe por uma avaliação especializada, porque temos doenças potencialmente mais graves, que podem ter sintomas parecidos. Sem uma avaliação médica, às vezes, vamos passar por outras coisas e não tratar”, adverte.
Para o bipolar, o episódio maníaco precisa ser persistente. “Não existe uma manhã de mania para o bipolar, mas pode haver para o borderline, de uma euforia, uma empolgação rápida. No bipolar, isso pode acontecer e a pessoa voltar a ficar eutímica, como chamamos, que é o humor normal; mas não é frequente que ela volte a abrir episódios maníacos rápidos. Há pessoas em que vai acontecer isso, mas são exceções”, explica.
A grande diferença entre o borderline e o bipolar é a ocorrência episódica da bipolaridade. “O borderline é sempre daquele jeito ou na maior parte do tempo e tem variações mais frequentes. Geralmente, essa reação é por uma hiper-reatividade do humor. Você fala algo que a pessoa não gosta e ela explode”, aponta.
Tarcísio observa que todos temos dias melhores e piores, porém, quando essa variação compromete seu convívio social e sua funcionalidade, merece atenção. “No bipolar temos essas quebras mais graves, delimitadas. No borderline, isso acompanha a vida do indivíduo, não necessariamente tem essas quebras”, compara.
Medicação e tratamento
O tratamento da depressão bipolar, que faz parte do diagnóstico do tipo 2, é completamente diferente do tratamento da depressão unipolar – a depressão que a pessoa tem sem apresentar episódios maníacos. “A medicação que usamos para tratar a depressão unipolar, que são os antidepressivos, não podem ser usados no transtorno bipolar, porque eles aumentam o risco de uma virada maníaca. Ou seja, você trata a depressão com antidepressivo e abre uma fase maníaca, que é potencialmente muito mais grave do que a fase depressiva. Não que a fase depressiva já não seja muito grave, mas, potencialmente, a mania é mais grave”, ressalta.
A medicação para o bipolar não pode ser interrompida, “porque o risco que a pessoa se expõe quando está maníaca não nos permite retirar a medicação”, justifica.
Conforme o psiquiatra, é difícil a pessoa admitir que é bipolar. “Quando a pessoa está eutímica, muitas vezes, ela sente uma grande vergonha ou arrependimento de coisas que fez enquanto estava maníaca. Causa muito sofrimento a ela lembrar das coisas que fez num episódio maníaco”, diz. Outro desafio é convencer o paciente que ele depende da medicação permanente.
Dr. Tarcísio enfatiza que o bipolar sofre de um transtorno raro, que não é tão frequente quanto se imagina. “A ideia é que a pessoa não tenha mais essas alterações no humor, pois o objetivo do tratamento é que a pessoa fique eutímica”, salienta.
Como oferecer ajuda?
É importante que a pessoa que possui um transtorno mental receba apoio de quem o cerca. O primeiro passo para alguém poder ajudar essa pessoa é entender que ela não está bem e isso fica mais manifesto quando o indivíduo deixa de se comportar como era de costume – o que a psiquiatria chama de quebra de funcionalidade.
Essa mudança de comportamento é bem diferente da instabilidade de humor, segundo o especialista. No caso da instabilidade, a pessoa reage mal a algum fator estressante e esse não é, necessariamente, um critério presente no transtorno afetivo bipolar.
Também não há, exatamente, uma herança genética que determine a bipolaridade, ainda que, comparada a outras doenças psiquiátricas, seja a que apresente maior relação de histórico familiar.
Para abordar uma pessoa com bipolaridade e ajudá-la a se encaminhar para ajuda e tratamento, segundo o psiquiatra, vale o mesmo que para todos os demais transtornos: mostrar a ela o que mudou, o que ela deixou de fazer ou o que começou a fazer – que alterou sua rotina, quais os riscos e apoiar. “Todas as doenças mentais, os transtornos mentais ainda são envolvidos de muito preconceito e muitas rotulações. A pessoa aceitar que precisa desse acompanhamento ou de medicação para a vida toda não é um processo fácil”, pontua.
Tratamento multidisciplinar
O acompanhamento médico pode ser multidisciplinar, segundo o psiquiatra, pois alguns casos podem vir encaminhados de psicólogos. Outros casos podem ser de combinação de medicamentos e psicoterapia.
Já o neurologista tem outra função, segundo Dr. Tarcísio. “Ambos trabalham com o cérebro, só que o neurologista trata mais a parte física do cérebro e o psiquiatra trata uma parte mais específica, que é a mente. É como se o neurologista trabalhasse com o hardware e o psiquiatra com o software“, diferencia.
O neurologista trata doenças como a doença de Parkinson, doença de Alzheimer, AVC, esclerose múltipla. O psiquiatra trata doenças como a ansiedade, depressão, transtorno bipolar e esquizofrenia.
“O neurologista pode tratar depressão e ansiedade, assim como é esperado que qualquer médico saiba tratar depressão e ansiedade leve. Mas não é o dia a dia da especialidade. Frequentemente, como eles têm uma área afim, acabam assumindo pacientes da psiquiatria, principalmente, porque, aqui em Ponta Grossa, temos mais neurologistas que psiquiatras”, destaca.
Quanto ao psicólogo, muitas vezes, ele se torna a porta de entrada, pois um psicólogo bem treinado vai reconhecer se é um caso de transtorno mental – e encaminhar para o psiquiatra. O contrário também acontece. “Se chega um paciente borderline para mim, vou dizer que ele precisa de psicoterapia e vou encaminhar. O contrário também pode acontecer”, explica.
O que não pode acontecer, frisa, é o paciente que está clinicamente doente não ser encaminhado ao psiquiatra ou um paciente que precise de psicoterapia seja apenas medicado.
Estigmas ultrapassados
Dr. Tarcísio ressalta que as doenças mentais são carregadas de estigmas ultrapassados relacionados à religião, que costumavam apontá-los como possessão demoníaca ou “falta de Deus”.
“Nenhuma doença psiquiátrica é causada por problemas espirituais. Isso foi uma avaliação histórica”, ressalta. Ele menciona que a Bíblia descreve doenças hoje tratáveis, como a epilepsia e a hanseníase, como “marca do demônio” e que essa ideia precisa ser abandonada. “Sempre que for para esse lado de que [o transtorno mental] é uma coisa espiritual, isso está errado”, salienta.
Segundo o psiquiatra, não há problema em buscar apoio na fé – seja um padre, um pastor, um pai de santo; mas há problema em se restringir a isso e deixar de lado a possibilidade de se tratar com um especialista.
Confira como foi o bate-papo com Dr. Tarcísio na íntegra: