Quinta-feira, 02 de Maio de 2024

Artigo: “Pequeno e incompleto guia lírico de Ponta Grossa”, por Miguel Sanches Neto

2022-12-14 às 11:19

Pequeno e incompleto guia lírico de Ponta Grossa

Centro

O centro de uma cidade não é apenas onde está o comércio ou onde os principais prédios se enfileiram. Isso são apenas detalhes.

O centro da cidade é onde todos se encontram, pessoas se concentram, desejos se misturam. O centro é o movimento dos que trabalham, mas também dos que vagam em busca de não se sabe bem o quê neste labirinto de prédios e ruas estreitas – porque esta é uma cidade de outros tempos.

É nessas vias que faço caminhadas matinais ou vespertinas expedições a pé, contemplando casas com quintais de cimento, pomares de árvores velhas, lojas e suas vistosas vitrines, os cafés com todas as notícias, principalmente aquelas que não aconteceram, os bares tomados por uma sede profunda, os hoteizinhos suspeitos. Em meio a tudo isso, vago aspirando cheiros fortes que se adensam nesta cidade diurna que meus passos frequentam.

À noite, percorro-a de carro, na companhia da família. É hora das avenidas iluminadas como corredores de um shopping a céu aberto, mas também de ruelas estreitas, casas de moradia com luz na sala de tevê, e roupas penduradas numa sacada qualquer dos muitos prédios residenciais em esquinas repletas de desejos, porque esta é outra e a mesma cidade. A beleza do centro é rude e barulhenta, é uma beleza de luzes e de seres lúgubres, de desfiles e de escândalos calados, de igrejas que nos purificam e palavras impronunciáveis.

Todos se conhecem no centro, todos se reconhecem nele, mesmo morando em outros lugares. É a cidade pequena, com seus personagens, figurinhas fáceis e também difíceis.

Centro, cidade resumida, tempos sobrepostos, trajetórias cruzadas que se estendem por nossas ruas íngremes, e nos levam a todos os bairros mas logo-logo deles nos devolvem. Como uma ampulheta – enche e esvazia, esvazia e enche –, vai criando o calendário de nossos dias.

Oficinas

Para quem cruza a linha de trem, para quem se afasta do centro, para quem vai em busca da capital do estado, em um dos dorsos desta colina cheia de ramificações sobre as quais se constroem as principais vias da cidade, para quem busca as muitas fábricas, para quem exerce os muitos ofícios – Oficinas.

O hemisfério fabril.

Que trabalha em todos os turnos, ônibus lotados de cidadãos que acordam cedo ou passam a noite no serviço, novos produtos que saem daqui com destino ao resto do país e ao exterior, a cidade que se dispersa, que acolhe novos técnicos, multiplicando empregos. Em meio às fábricas, crescem os loteamentos, os conjuntos e os condomínios, bairros se alongam à margem dos trilhos, das fábricas e do comércio. É a outra cidade, estrangeira e moderna, com quatro turnos. E tudo começa/começou em Oficinas, com a construção e manutenção das máquinas da rede ferroviária.

Em um canto, a Colônia Dona Luíza, o extinto seminário Verbo Divino, e logo ali o presídio, mas também as uvas e vinhos colonos, porque nem tudo é labuta, tarefa, há também a festa.

Nenhuma maior do que a do Operário. O Germano Krüger é o outro centro da cidade, e mesmo quem não gosta de futebol, como é o meu caso, torce para o Fantasma. Assim, a cidade se concentra no estádio que, embora pequeno, embora modesto, cresce para ser o umbigo de nosso universo. Porque se há o trabalho nas fábricas, se há os crimes mil no presídio, também há a alegria do vinho e o prazer de mais uma partida. Eis as bandas de Oficinas.

Nova Rússia

A multiplicidade de etnias, tantas e tão variadas que permitiu a criação de uma Copa do Mundo local, só com os descendentes dos principais países – todos simbolizados nesta região urbanizada pelos russos. Trouxeram à cidade a vocação para o transporte, e com seus carroções venceram longas distâncias, continuando assim a tradição tropeira. Sobre a matriz viajante da cidade se sobrepõe a afeição eslava para todas as vastidões.

É a cidade que se afasta, estendendo-se para as rodovias do interior do país e da América Latina. Não há mais tropa, o carroção de imigrante é agora o bitrem de vários eixos, que de lá parte e lá chega. E crescem as tantas empresas deste ramo. Costureiras de encerados com suas máquinas trabalhavam a céu aberto nas beiras da pista, onde hoje ainda é farto o fornecimento comercial de afeto, também conhecido como sexo.

Como outra cidade, sempre renovada, alteram-se as pessoas nesta urbe imprecisa, meio caminho da viagem só de ida. Ainda está em processo a imigração rápida dos que chegam e partem, mas, nos bairros, casas de raízes de concreto se afincam no solo e fazem deste campo um território próprio.

Vindo do período dos tropeiros, distante no espaço e no tempo, chega-nos todos os dias, pelos restaurantes deste hemisfério, o prato mais tradicional da cidade – o alcatra na pedra, com seus acompanhamentos rústicos que ninguém nunca recusa, mesa farta de caminhoneiro, nosso jeito de ser russo-brasileiro.

E se não eram férteis as terras concedidas aos imigrantes, intermináveis são os nossos horizontes, assim no hoje como no ontem.

Uvaranas

Uma cidade-montagem, que se organiza de forma imprevisível, revelando-se em pedaços recortados a partir dos mirantes em que nos encontramos, e que assim vai costurando parte do centro com os campos, matas cerradas com uma fábrica, um prédio solitário com um capão de araucárias.

Nenhum lugar mostra melhor essas possibilidades de composição de uma urbe que se embaralha para quem a olha do que as bandas de Uvaranas. O bairro se espraia em faixas estreitas pelas linhas mais elevadas da paisagem, margeando o rural ali ao lado.

Caminho para os pontos mais simbólicos da natureza, Buraco do Padre, com o perdão da má palavra, Alagados, nossa vila-balneário, paraíso dos pescadores sem pecado, quedas do Rio São Jorge, igrejinha de Santa Bárbara, onde talvez um dia eu me case, Cachoeira da Mariquinha, chorando dia após dia. É que nos internalizamos por Uvaranas, esse nome vegetal de rude ressonância, que tanto estranha a quem aqui chega. Mas que se torna logo mais do que familiar, lembrando-nos de varandas – ah, as varandas de Uvaranas, comunicação com tantas belezas. Quando a palavra faz parte de nosso vocabulário mais íntimo, já somos da cidade em definitivo. Quem, vindo de longe, pronuncia este nome sem a menor estranheza é porque venceu as distâncias estrangeiras.

No fim do bairro, um dia existiu um monumento que era para ser arte moderna, logo virando trash, uma araucária estilizada que o povo batizou de merda. Com isso, deixou-se claro que diante de nossa onipresente natureza não se admitem réplicas.

Cantava um seu morador, o professor Daniel Albach Tavares, que de Uvaranas nos vem o sol, que insiste em se pôr na Ronda. Então, escancaremos as janelas para as manhãs de Uvaranas.

 

Miguel Sanches Neto é escritor e reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa