Domingo, 05 de Maio de 2024

Crônica D’P: As pombas e o tuim, por Kleber Bordinhão

2023-05-10 às 15:38
Foto: Reprodução

Um casal de pombas fez lar na garagem da casa dos meus pais. Escolheram um varal de roupas em forma de sanfona que a minha mãe instalou no fim do cômodo. Em meio a trapos e capas velhas de assento de caminhão, as aves construíram o seu ninho.

Descobri no susto, quando precisei daqueles trapos para uma tarefa qualquer. Fui lá mexer, e uma pomba me fuzilou com aquele olhar marrom de quem mais teme do que assusta.

– Tem um ninho de pombas lá na garagem, mãe.

– Eu sei. Não vá assustar os bichos.

Grande descoberta, a minha. Ainda assim, precisava dos panos. Com cuidado, invadi o espaço da hóspede e arranquei um pelego vermelho de lá de cima.

Daí em diante, passei a conferir como estava o desenvolvimento do residencial. Volta e meia flagrava um graveto caído aqui, outro pendurado acolá. O empreendimento parecia crescer apesar dos desperdícios.

Temia, a cada vez que estacionava o carro, cometer uma chacina familiar. “Jovem família de aves é encontrada morta em garagem no Santa Paula.” “Motivo: asfixia por monóxido de carbono.” Mas o Google me alertou que esses acidentes só ocorrem em lugares completamente fechados. O que não é o caso daquela garagem.

Duas coisas me despertavam a curiosidade: quando veria as duas pombas juntas e quantos seriam os herdeiros. Pesquisei a relação da espécie nessa rotina de gerar novas vidas, conseguir o ganha pão e ainda preocupar-se com a construção do próprio teto. Funciona assim: pombos são monogâmicos; uma vez escolhido o parceiro, é para o resto da vida. Construído o ninho e botados os ovos — variam de um a dois –, o casal se reveza na tarefa de incubação. Entre 17 e 19 dias, pronto, crianças na casa!

Em uma manhã de descuido do casal, avistei dois ovos minúsculos no ninho, olhei em volta e desci da cadeira rapidamente para não ser flagrado em tamanha falta de privacidade. Na tarde do dia seguinte, enfim, pude conhecer a família completa em seu novo lar. Lá estavam as pombas e os ovinhos desfrutando da vista para o quintal, conforme enalteceram os corretores.

Naqueles dias, li a crônica “História triste de mim”, em que Rubem Braga conta uma passagem de sua infância. Passando férias no interior, ele recolhe de um ninho de joão-de-barro um filhote de tuim — espécie bem pequena de periquito. Adota o passarinho, cuida, perde-o e reencontra-o algumas vezes. Até que, já de volta à cidade numa triste tarde, vê pistas de penas, sangue no chão e a sombra de um gato ruivo no muro. Adeus, tuim!

Lamentei o triste fim do periquitinho e me lembrei dos pombos da garagem da minha mãe. “Dá crônica, com certeza”, pensei. Na visita seguinte à casa dela, levei o notebook para dar uma última olhada nas aves e escrever o texto ali mesmo. Ao chegar, entre uma conversa e outra, a minha mãe pediu para eu ver algo que tinha aparecido no chão da garagem naquela manhã. Lá estava uma pequena e reveladora mancha de sangue.

– Ficou alguma coisa no ninho?, perguntei.

– Nada, nem penas.

Corri os olhos para os muros do quintal. Nada de gato ruivo também.

Kleber Bordinhão é escritor, autor de livros de poesia e crônica. Instagram: @kleberbordinhao.

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #294 Março/Abril de 2023