Domingo, 08 de Dezembro de 2024

D’P Inclusão: Botei meu cabelinho

Cortar o cabelo pode ser um verdadeiro desafio para crianças do espectro autista - e para quem corta. Com paciência e criatividade, cabeleireiras e barbeiros de Ponta Grossa se especializaram em atender a esse público de forma divertida e tranquila
2024-10-16 às 09:18
Foto: Reprodução

por Michelle de Geus

Cortar o cabelo de crianças é sempre um desafio. Nem sempre elas conseguem ficar paradas por muito tempo e o choro acaba fazendo parte do processo. Mas poucas pessoas conhecem tão bem esse desafio quanto pais e mães de crianças que fazem parte do transtorno do espectro autista (TEA). A dificuldade para essas crianças é ainda maior por conta da hipersensibilidade sensorial e do excesso de estímulos em salões e barbearias. Os dedos constantemente passando entre os cabelos, a textura da tesoura, os fios caindo sobre os ombros e o barulho da máquina podem incomodar os pequenos. Pensando nisso, cabeleireiras e barbeiros de Ponta Grossa têm se especializado em atender a esse público, transformando esse momento em algo mais tranquilo e fácil.

É o caso de Lucas Jhonatan Nunes, que trabalha como barbeiro profissional há cinco anos e atende na Teixeira Barber. Ele corta cabelos de crianças do espectro autista desde 2021. A partir de então, ele tem se destacado pelo carinho e a paciência com os pequenos, ficando carinhosamente conhecido como “tio Lucas”.

No tempo e do jeito da criança

Lucas relata que começou a cortar o cabelo de crianças do espectro autista quando percebeu o quanto esse público sofria com a falta de acessibilidade mesmo em atividades rotineiras, como cortar o cabelo. “Foi aí que eu tive a ideia oferecer um serviço mais humanizado. Eu corto o cabelo do jeito e no tempo da criança”, explica, ressaltando que esse atendimento humanizado é o maior diferencial de seu trabalho, o que impacta também no tempo que ele leva para executar o serviço. Se ele precisa de 20 a 30 minutos para cortar o cabelo de uma criança que não pertence ao espectro, para trabalhar com crianças do espectro ele pode levar mais de uma hora.

“A técnica que eu utilizo consiste em identificar quais são as dificuldades da criança para que ela possa superar o medo de cortar o cabelo” (Lucas Jhonatan Nunes, barbeiro profissional da Teixeira Barber)

Para o barbeiro, o maior desafio é entender exatamente qual é a dificuldade e o motivo do medo da criança. “A técnica que eu utilizo consiste em identificar quais são as dificuldades da criança para que ela possa superar o medo de cortar o cabelo”, aponta, acrescentando que esse público pode ter hipersensibilidade ao toque, aversão a barulhos altos ou inesperados e outras dificuldades sensoriais. “Por isso é tão importante saber exatamente o que está incomodando. Eu me adapto à criança e assim ganho a confiança dela”, explica.

Muito além do cabelo

O momento mais comovente que Lucas já viveu cortando o cabelo de crianças do espectro autista foi quando ele atendeu a um menino de dois anos. “Enquanto eu cortava o cabelo da criança, a mãe dele chorava. Depois que eu terminei o serviço, ela me contou que em outros lugares maltratavam e até machucavam o menino”, aponta. “Naquele momento eu entendi que o meu trabalho vai muito além de simplesmente cortar cabelo”, complementa.

O barbeiro admite que trabalhar com esse público pode ser desafiador, mas nada que doses extras de carinho e paciência não resolvam. “Um dos momentos mais delicados foi quando eu atendi a uma criança que não gostava de entrar na barbearia. Após muita conversa, eu consegui cortar o cabelo do menino no carro do pai dele”, cita Lucas, cuja agenda é 40%, em média, dedicada ao atendimento de crianças do espectro autista.

No lugar do outro

A cabeleireira Salete de Oliveira Cunha, sócia-proprietária do salão infantil Hair Kids, atua na profissão há 30 anos. Foi ouvindo e vendo as dificuldades dos pais para encontrarem profissionais que cortassem o cabelo dos filhos atípicos que ela percebeu a necessidade de oferecer um serviço diferenciado para crianças do espectro autista. “Os principais diferenciais, quando você está cortando o cabelo de uma criança do espectro autista, são o amor, o carinho, a tranquilidade e a capacidade de se colocar no lugar do outro”, afirma, acrescentando que, embora existam técnicas específicas para realizar o corte, o mais importante é ter conhecimento e percepção da situação para que o pequeno se sinta confortável.

“Quando se trata de cortar o cabelo de crianças do espectro autista, o importante é ter amor, carinho, tranquilidade e a capacidade de se colocar no lugar do outro”
Salete de Oliveira Cunha, sócia-proprietária do salão Hair Kids

Para Salete, um dos grandes desafios de trabalhar com esse público é não ter o local devidamente preparado para o atendimento. “Mas é possível contornar isso adaptando o ambiente para receber as crianças de forma que elas fiquem mais tranquilas e dispostas a colaborar, ou marcando o corte de cabelo em horários que não tenham outros clientes”, observa, mencionando que no Hair Kids as cadeiras são em formato de carrinho e há vários brinquedos espalhados pelo salão.

Alegria nos olhos

Ao longo de seus 30 anos de profissão, a cabeleireira viveu muitos momentos emocionantes. “O que mais me marcou foi quando eu terminei de atender a uma criança e a mãe me abraçou chorando e me agradecendo, porque ela não acreditava que o filho tinha deixado eu cortar o cabelo dele”, recorda. “Isso me deixou muito emocionada. Até hoje, quando eu me lembro, eu vejo a alegria nos olhos daquela mãe e sinto aquele abraço gostoso que ela me deu”, frisa.

Apesar de ter bastante experiência, cada novo corte de cabelo de criança do espectro autista é sempre um desafio para Salete. “Quando é o primeiro corte da criança, eu nunca sei como ela vai se comportar, como vai ser o atendimento, se vai ter uma boa aceitação ou não”, comenta, acrescentando que o desafio continua mesmo quando ela já conhece a criança. “Por isso cada simples avanço é motivo para ficar feliz”, adiciona.

Atualmente, a cabeleireira atende a cerca de 20 crianças do espectro autista por mês. Segundo ela, o tempo de atendimento varia bastante e depende muito do grau de suporte que a criança necessita.

Peregrinação por salões

A terapeuta ocupacional e médica veterinária Michelly Carvalho Ribas é mãe do pequeno Davi, de seis anos, e conta que durante muito tempo teve dificuldade com o corte de cabelo do filho. “No início, ele não aceitava nem entrar no salão, por ser um ambiente desconhecido e não ter nenhum atrativo. Depois apareceram os problemas sensoriais relacionados ao som e à vibração da máquina de corte e da tesoura”, detalha. “Ele também não aceitava colocar a capa protetora e ficava extremamente irritado quando os cabelos cortados entravam em contato com a pele”, afirma ainda.

Michelly chegou a experimentar três salões diferentes, mas a criança chorava e não permitia que cortassem o seu cabelo. “Então eu tive de comprar uma máquina e eu mesma cortava em casa, enquanto ele dormia”, lembra.

As coisas só começaram a mudar quando ela descobriu o salão Hair Kids, por indicação em um grupo de WhatsApp chamado “Família TEA PG”. “Já na primeira vez, utilizando algumas estratégias, conseguimos fazer o corte”, recorda, mencionando que, com carinho e paciência, a cabeleireira Salete, já mencionada nesta matéria, conquistou a confiança da criança, fazendo com que o menino se tornasse cliente assíduo do salão.

“Busque profissionais que tenham paciência, saibam respeitar os limites da criança e tenham um espaço atrativo para elas, com brinquedos e desenhos” (Michelly Carvalho Ribas, mãe do Davi, de seis anos)

“Hoje ele já fica mais tranquilo e permite o uso da máquina e da tesoura, sem ficar nervoso ou incomodado”, relata a mãe, destacando que ela não precisa nem mesmo ajudar ou participar de alguma forma do corte de cabelo. “Eu fico no salão enquanto ele está cortando, mas não preciso ficar ao lado ou intervir em nenhum momento. Ele vendo pelo espelho que eu estou ali, já fica mais calmo”, aponta.

Conselho de mãe

Para os pais que têm os mesmos problemas, Michelly aconselha a pedirem indicações de cabeleireiros ou barbeiros com experiência no corte de cabelo de crianças do espectro autista. “Busque profissionais que tenham paciência, saibam respeitar os limites da criança e tenham um espaço atrativo para elas, com brinquedos e desenhos”, sugere, lembrando que é importante que o profissional esteja acostumado a realizar a tarefa com a criança em pé, em diversos locais do salão ou mesmo em movimento. Michelly sugere ainda buscar a ajuda de terapeutas ocupacionais, que podem trabalhar com as dificuldades sensoriais da criança e ajudá-las a vencer essas barreiras.

Conteúdo publicado originalmente na Revista D’Ponta #303