A doação de corpos para estudo científico ainda é um tema cercado de dúvidas e tabus. Em entrevista ao programa ‘Manhã Total’, da Rádio Lagoa Dourada (98,5 FM), nesta segunda-feira (28), o professor do curso de Medicina da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e presidente da Comissão de Análise de Doação de Corpos, Renato Bach, esclareceu como funciona o processo de doação, a importância do uso dos cadáveres na formação de profissionais da saúde e a atual escassez enfrentada pelas instituições.
Segundo o professor, hoje a UEPG conta com aproximadamente oito cadáveres inteiros, mas muitos dos corpos utilizados estão desmembrados e em processo de catalogação. Ele explica que, mesmo com o avanço da tecnologia, o contato direto com o corpo humano ainda é insubstituível na formação médica. “É crucial principalmente pela transferência de conhecimento que está em duas dimensões nos livros para o tridimensional de um ser humano de verdade. Por mais que hoje tenhamos programas de computador e mesas holográficas que auxiliam o aluno a realizar procedimentos cirúrgicos, o contato com o cadáver é muito importante”, destaca.
Além da aprendizagem técnica, o contato com o corpo humano também ensina aspectos essenciais da prática médica. “O cadáver no curso de medicina e nos cursos de ciências da saúde é o primeiro paciente com o qual o aluno entra em contato. Também existe o desenvolvimento de certas habilidades e atitudes que são importantes para a formação”, afirmou. Entre essas habilidades, Bach destacou a percepção da diferença entre o que está nos livros e a anatomia real, o uso correto de instrumentos cirúrgicos, como dar pontos e manusear materiais.
Apesar da importância, a escassez de cadáveres preocupa. “Hoje existe uma escassez de cadáveres. A legislação mudou, é uma legislação muito melhor hoje. Mas nós ainda lutamos com essa escassez. Se tivéssemos um número maior como antigamente, poderíamos realizar mais procedimentos cirúrgicos nos cadáveres”, destacou.
Doação
O processo de doação pode ser feito de duas formas: de maneira direcionada, com a pessoa manifestando em cartório o desejo de doar seu corpo a uma instituição específica, como a UEPG, ou de forma não direcionada, o que encaminha o corpo ao Conselho Estadual de Distribuição de Cadáveres, que distribui os corpos entre as 62 instituições universitárias cadastradas. “É importante que a família esteja ciente da decisão da pessoa”, lembrou o professor.
Mesmo com a regulamentação, cadáveres não reclamados ainda podem ser destinados ao ensino, desde que respeitadas as exigências legais. “Isso mudou com a legislação de 1992, contudo isso pode acontecer eventualmente e existe essa previsão legal. Mas hoje há uma tendência onde se prefere o cadáver doado em vida por questões éticas”, explicou. Ele acrescenta que cadáveres de vítimas de mortes violentas não podem ser doados, apenas os que faleceram por causas naturais ou doenças crônicas.
A doação é aberta a qualquer pessoa, desde que não haja doenças infectocontagiosas transmissíveis após a morte. Caso a família deseje doar um corpo após o falecimento, o contato deve ser feito logo após o falecimento, antes do sepultamento, para que o corpo possa ser adequadamente preparado. Os interessados podem buscar informações no site da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia (SETI), dentro da página do Conselho Estadual de Distribuição de Cadáveres (acesse aqui), ou diretamente com a UEPG nos números (42) 3220-3000 e (42) 3220-3300.
Armazenamento
O armazenamento dos corpos segue protocolos rigorosos. Assim que doados, eles são encaminhados ao laboratório de anatomia, onde passam por um processo de conservação. “A gente coloca o formol e prepara para que não sofra os efeitos da decomposição. Posteriormente, esse corpo fica em torno de seis meses dentro de um tanque com formol até que seja completado o preparo. Não é imediatamente que se faz o uso”, explicou Bach.
Apesar do preparo permitir a conservação por anos, há no Paraná uma luta para que os corpos não fiquem indefinidamente nos laboratórios. “Estamos nos encaminhando para uma nova legislação que possa prever o tempo de uso e o resgate destes corpos pela família”, afirmou. Em um cenário ideal, o esperado é que a universidade realize cerimônias ecumênicas com a entrega das cinzas à família após o uso científico, como forma de respeito e gratidão. “Gostaríamos que o corpo em determinado tempo fosse devolvido à família, onde é cremado. Os alunos que fizeram o uso científico entregam as cinzas em uma cerimônia”, pontuou.
Respeito e ética
O professor reforçou que todos os corpos são tratados com extremo respeito na instituição. “Esses corpos são extremamente úteis para a aquisição de conhecimento por parte dos alunos. Temos muito cuidado, respeito e gratidão por aqueles que fazem esse ato de entrega tão maravilhoso”, disse. Ele relatou, inclusive, que há um cadáver conhecido pelos professores e alunos, cuja história é apresentada nas primeiras aulas como forma de reforçar a ética no processo. “Contamos aos alunos a história do senhor que, já doente, fez a escritura pública. Onde nosso técnico buscou o corpo e que foi preparado. É sempre colocado esse lado ético”, disse.
Em resposta a preocupações sobre a exposição indevida dos corpos, Bach foi enfático. “Quando isso acontece é por conta de um desvio de conduta do próprio aluno. Mas não temos tido esse tipo de problema. Desde o início das aulas de anatomia passamos o respeito a essas pessoas”. Ele ainda lembrou de um caso em que a própria universidade recusou o uso de um corpo doado por uma ex-aluna para preservar o anonimato da família.
Encerrando a entrevista, o professor fez um apelo à população. “Fica aqui o meu apelo para que a população pense nesse ato que é incrível como nenhum outro. Imagina o carinho pela humanidade de quem dispõe o seu próprio corpo para estudos que contribuem para a formação de futuros médicos, dentistas e outros profissionais de saúde”, finalizou.
Na UEPG, além do curso de Medicina, os cadáveres são utilizados nas aulas dos cursos de Odontologia, Psicologia, Educação Física, Biologia, Farmácia, Enfermagem e Nutrição.
Veja a entrevista na íntegra
Por Camila Souza.